DA PALAVRA COMO
INCENSO:
A PROPÓSITO DA
POESIA COMPLETA DE ISABEL GOUVEIA
José
Fernando Tavares
A publicação do volume intitulado Na Voz da Esperança há Lágrimas (2012),
da autoria de Isabel Gouveia, permite dar a conhecer aos leitores de língua
portuguesa a poesia completa da autora publicada até ao momento. O livro
divide-se em duas partes principais: a primeira é formada por um conjunto de
oito títulos e de um apêndice dedicado aos poemas escritos na adolescência,
compreendendo o período entre 1950 e 1990; a segunda parte é formada por um
conjunto de seis títulos, compreendendo o período entre 1985 e 2007. Trata-se,
por isso, de um volume panorâmico que ordena cronologicamente todos os livros
que a autora foi publicando desde 1962, assim como também todos os poemas
dispersos e inéditos. É de notar que Isabel Gouveia já havia publicado, no
emblemático ano 2000, um volume intitulado Poesia
Reunida, no qual seguiu critério idêntico. É hábito comum, na cultura
literária portuguesa, os poetas reunirem os livros que vão publicando ao longo
da sua carreira em volume compacto; outros, preferem apenas publicar antologias
dos poemas que consideram de maior qualidade.
Considero que a opção de Isabel Gouveia
foi a melhor, pois este livro permite-nos compreender com clareza as diferentes
fases do seu processo criativo. Por outro lado, a autora dá-lhe um título
particularmente expressivo pela sua aparente contradição: «na voz da esperança
há lágrimas», acentuando, desta maneira, a própria essência da vida, não apenas
da sua vida interior, mas também da própria vida humana na sua generalidade,
aspecto que confere maior humanismo à sua obra, circunstância que não
compromete a autora nenhuma tendência poética específica.
Deve o leitor entender estas «lágrimas»
expressas no título, não como um elemento de tristeza, ou de angústia (como foi
erroneamente apregoado), mas sim como um elemento de liberdade. Porque essa
«voz» é uma voz que se manifesta de uma forma livre, até mesmo quando se
submete à rigidez formal do soneto.
É, de facto, com o cultivo do soneto que
Isabel Gouveia inicia a sua carreira como poetisa com um livro intitulado Atrás do Tempo (1962), volume que reúne
poemas de 1950 até 1962. O soneto é um género poético de proveniência italiana
que é praticado em Portugal desde o século XVI e cujo apuramento formal é
alcançado com o génio poético de Camões. Sendo um género recorrente na poesia
portuguesa, poucos são aqueles que o praticam pela dificuldade formal que
exige. Isabel Gouveia apresenta-o no seu livro de estreia com surpreendente
brilhantismo pois encontramos neste livro uma voz lúcida que questiona, com
determinação, e através de um vocabulário cuidado e elevado, o seu destino
individual, não obstante a manifesta juventude do sujeito poético. Temas como a
«ânsia de libertação», a «solidão», o «orgulho», a «loucura» ou o «sonho»,
encontram-se aqui, numa voz intimista da consciência.
A leitura integral da obra poética de Isabel
Gouveia permite ao leitor mais esclarecido compreender a virtualidade desta
poesia. Se o conteúdo formal dos poemas apresenta, por vezes, algum excesso de
palavras por obrigatoriedade do esquema rimático, a capacidade criativa do
sujeito poético ameniza algum do excesso vocabular, revelando uma voz que tem
sempre muitas coisas para dizer ao leitor. Por esse motivo, não estamos apenas
perante uma poesia que não se limita a manifestar sentimentos, mas também
ideias; ideias expressas por imagens: «No meu silêncio há sóis a resplandecer,
/ rios de prata nas lágrimas que choro, / e as mãos débeis, cansadas, com que
imploro, / são vulcões de crateras a ferver.» A força das imagens é um aspecto
fundamental desta poesia, pois está presente em cada verso uma imagem plena de
significação.
Se, no soneto, o sujeito poético segue
as regras da tradição, também na prática do verso livre encontramos a aplicação
das regras da métrica e da prosódia a ela associada, muito embora o sujeito
poético de Isabel Gouveia recorre amiúde à quadra de tom popularizante. É o que
acontece no livro intitulado Os Sete Dias
Passados (1965), formado ora por tercetos, ora por quadras, ora por
oitavas, entre outros versos ainda mais longos, não obstante o rigor da
sequência métrica e da sua brevidade silábica. Quanto ao ritmo de leitura,
porém, é a quadra que se impõe, mesmo que se trate de um poema longo. À
semelhança do que acontece no livro anterior, avultam nestes poemas os valores
cristãos. Destacamos, neste livro, o tema da culpa e do perdão, mas também o
tema do ódio e da escravidão, a serenidade dos dias, o encontro do sujeito
poético consigo próprio. O livro termina com um poema formado por cinco quadras
sem espaçamento entre si intitulado «Desencanto», o qual, e à semelhança dos outros,
possui uma tonalidade intimista: «[…] Quem me prendeu neste cais / de
desencanto sem fim? / Ternura de velho arrais / já não se orgulha de mim.».
O livro breve intitulado Incómoda Verdade (1972), apresenta-nos o
mesmo tom confessional, desta vez através de um conjunto de poemas compactos de
versos interpolados e de sílabas variáveis. O poema inicial não deixa de ser
uma manifestação poética que se aproxima de algo a que podemos chamar uma
«litania» poética, dado o uso intensivo do vocativo: «A vós, ó oprimidos que
esperais / pelas trompas febris da redenção, / ó pálidos escravos que entornais
/ vosso cálice em vasos de ignorância […]». O sujeito poético vai fazendo o
retrato crítico do mundo, sobretudo no que respeita ao comportamento humano. Os
dois últimos poemas deste livro, respectivamente intitulados «A maca de
hospício» e «Palhaço e palhaços», confirmam-nos, não apenas a irreverência do
sujeito poético perante as convenções do mundo, mas também essa virtualidade de
que falávamos acima. O sujeito poético elabora uma tentativa bastante feliz de
ensaiar a poesia visual ou concretista que esteve em voga na primeira metade do
século XX em Portugal e nalguns países da Europa. Nesses dois poemas avultam a
sonoridade e a visualização física do poema, algo que é comparável a um jogo de
palavras.
Isabel Gouveia publicou, em meados do
decénio de 1970, o livro intitulado Tangentes
e Consequentes (1977). Começa por fazer o seu auto-retrato poético, como se
de uma pintura se tratasse, um pouco à maneira de Cesário Verde, um dos poetas
que a influenciou. Destacamos o poema intitulado «Psicanalítico», poema
confessional que questiona a existência: «Hoje sinto a impressão de nada ser, /
em confronto com tudo o que me envolve […] / Hoje sinto a impressão de asas quebradas
/ minhas dúvidas voltam insistentes […]».
Para completar a segunda parte do volume
dedicado à poesia completa da autora, seguem-se os Sonetos Imperfeitos Sobre a Noite, o Sol, o Mar e a Paisagem
(1950-1965); os Sonetos Sobre a Angústia
(1950-1965); os Poemas Vários
(1950-1975); outros Poemas Vários
(1975-1990); e, enfim, em apêndice, os Poemas
da Adolescência (1947-1949), o que não deixa de ser um acto corajoso, pois
são escassos os autores que publicam a sua poesia da adolescência. Em todo o
caso, trata-se de uma fase que a autora decidiu integrar neste volume por
revelar uma vocação criadora bastante precoce. Toda a fase compreendida entre
1950 e 1990 caracteriza-se, por um lado, e do ponto de vista formal, sobretudo
pela frequente prática do soneto e, por outro, pelo tom confessional que
imprime ao seu labor poético. Tem o leitor que considerar também a atitude
ética e interventiva do sujeito. Encontramos neste conjunto temas polémicos
como o desprezo que é dado aos poetas, a pobreza espiritual, o confronto hostil
entre homens e mulheres, o tempo perdido pela futilidade das pessoas, a
vacuidade dos gestos, a intolerância perante a diferença, entre outros. Mas
também é uma poesia onde há lugar para a esperança, tal como na abordagem que
faz ao eterno tema do amor, físico e espiritual, para a compreensão e para a
solidariedade entre os homens. Dir-se-ia que o sujeito poético de Isabel
Gouveia nunca baixou os braços perante a dura realidade do mundo,
pronunciando-se sobre essa realidade através da força da poesia.
A abrir a segunda parte do volume, o
leitor depara-se com um conjunto de poemas intitulado Apontamentos em Verso, os quais compreendem o período que vai de
1985 a 1995. São, na verdade, apontamentos, notas do quotidiano, aqueles que o
leitor aqui encontra. Nestes textos o prosaico ocupa o terreno do poético, pois
estes poemas em prosa podiam ser fragmentos de páginas de um diário (género
literário que Isabel Gouveia também cultiva).
Ainda no domínio daquilo a que a autora
define como «fragmento», ou «texto fragmentário», entenda-se, temos o livro
intitulado Fragmentos do Passado
(2001). De elaboração mais recente, este volume possui um fôlego textual que se
distingue dos anteriores, pois a autora revive, em verso, toda a história de
Portugal, desde a fundação da nacionalidade até à implantação da República.
Trata-se de um livro útil para esclarecer os leitores mais jovens acerca da
história do seu país.
Quanto ao livro intitulado Escuta o Coração do Mundo (2005), sem
dúvida o título mais bonito de toda a sua bibliografia poética, mantém o tom
confessional e interventivo, a reflexão sobre as coisas da vida e do mundo. Na
última parte, a autora dedica um grupo de poemas aos poetas portugueses que
mais a impressionaram, incluindo dois autores estrangeiros: Pablo Neruda e
Virgínia Woolf.
A publicação de A Minha Mão na Tua, em 2006, representa um momento marcante no seu
percurso poético. Trata-se de uma homenagem que a autora presta ao companheiro
que acabara de perder, circunstância que transforma este livro num documento da
maior importância no que se refere à sua expressão poética individual. Os
cinquenta e dois poemas que se encontram neste livro breve, mas intenso de
afectividade e de paixão, permitem compreender aos seus leitores que o amor é a
mais importante manifestação da essência do humano e que nenhum homem poderá
prescindir desse sentimento. Neste livro, o sujeito poético de Isabel Gouveia
despoja-se de todas as convenções e assume-se na sua inteireza de mulher que
ama e se recusa a perder esse amor. Ora todos sabemos que o amor não se explica
por palavras, mas apenas por imagens, pequenos indícios, momentos fugazes,
resquícios da memória onde se aglutinam muitas memórias de modo a que a paixão
possa determinar o seu sentido. Não existe, porém, sentido para a paixão,
embora todas as paixões possam ter um sentido íntimo, tão peculiar como o
espírito que o enforma. A unidade do espírito confunde-se com a peculiaridade
da paixão; é a sempiterna unidade na diversidade.
Encontra o leitor em A Minha Mão na Tua, não apenas uma
experiência amorosa violentamente interrompida, mas também o repositório de
toda uma vida que foi construindo o seu próprio saber. E há nele uma sabedoria
profunda, tal como se vê nestes versos: «Bem te peço que me digas / como hei-de
defender-me / dos espíritos malignos / que acompanham meu / percurso sobre a
Terra… / Não desses que partiram e habitam / regiões desconhecidas, / mas sim
daqueles que moram nalgum corpo / e se cruzam comigo nesta vida. / Que as suas
palavras melífluas, / com a doce calda de açúcar / que envenena, / e os seus
gestos untuosos, / não adormeçam o meu entendimento! / Faz com que os meus
ouvidos, bem abertos, / percebam as palavras ciciadas / no íntimo dos espíritos
/ e o porquê desses gestos / que incomodam com seu visco cínico…». Neste livro,
que considero uma grande lição de vida, e onde o amor ocupa o lugar principal,
e mercê desse despojamento de que falava acima, é a autora a falar na primeira
pessoa num diálogo permanente com o seu companheiro. É desta maneira que ela o
ressuscita: desenhando o seu retrato por palavras e apoiando-se no poder da
memória, uma memória enriquecida por uma vivência comum intensamente
partilhada, uma paixão mútua e eterna. Se os primeiros poemas deste livro
assumem um tom marcadamente fúnebre, os restantes falam-nos dessa paixão eterna
que romanticamente se assume quer na vida quer na morte. E, julgo eu, para além
da própria morte, pois todos sabemos que a morte não é o fim, mas apenas e tão
só um recomeço.
À semelhança do que acontece no diário
de Miguel Torga, também Isabel Gouveia incluiu alguma poesia no terceiro volume
do seu diário. Destes «Poemas Datados e Extraídos do Diário Ponte Levadiça» III» (2007), destacam-se
os sete poemas de carácter satírico que aí incluiu, sem dúvida outro aspecto da
sua virtualidade criadora e que se inscreve na tradição literária portuguesa
desde as suas primícias medievais.
A derradeira parte deste volume da sua
poesia completa intitula-se Caleidoscópio
(Poemário) e compreende poemas que se encontravam inéditos. O título sugere
uma grande variedade de temas, algo a que podemos comparar a uma girândola, ou
caleidoscópio poético, de carácter autobiográfico. Destacam-se os três poemas
agrupados sob o motivo de «Motes imperfeitos» e o «Dicionário futuro». A autora
intitula-os «Motes imperfeitos» por terem como mote os versos de três poemas de
Natércia Freire. Estes poemas, à semelhança da restante obra poética de Isabel Gouveia,
respiram um tom popularizante: «Minha estrada é longa, / passa em mil povoados,
/ e a minha bagagem, / tão pobre e pesada, / tem dias contados,
/ não serve a ninguém.». No que
respeita ao «Dicionário futuro», formado por seis poemas, pode o leitor
encontrar aquilo a que podemos chamar um «hino à palavra», pois a «palavra» é o
mote que determina toda a composição. Neste «dicionário futuro», o sujeito
poético enaltece a dimensão pura da palavra e compara-a à leveza do incenso.
Assim sendo, e para concluirmos este
percurso breve pela poesia de Isabel Gouveia, podemos dizer que a palavra
ascende à «purificação». A palavra pura é aquela que sobrevive ao tempo e essa
é a esperança que se sobrepõe às lágrimas de que o título nos fala. Trata-se,
não apenas de um desejo de redenção pela palavra, mas também do reconhecimento
de que só a prática das coisas simples pode trazer mais fecundidade ao mundo.
Terminemos com os últimos versos deste volume nos quais se regressa à ideia da
palavra como incenso: «Palavras perfeitas […] / em busca da sua foz… / Aí se
lançam num mar imenso, / aí se perdem umas das outras. / Sem descobrirem o seu
mistério / soltam perfume como de / incenso.».
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