10/03/2014

DA PALAVRA COMO INCENSO: A PROPÓSITO DA POESIA COMPLETA DE ISABEL GOUVEIA José Fernando Tavares

DA PALAVRA COMO INCENSO:
A PROPÓSITO DA POESIA COMPLETA DE ISABEL GOUVEIA

José Fernando Tavares

            A publicação do volume intitulado Na Voz da Esperança há Lágrimas (2012), da autoria de Isabel Gouveia, permite dar a conhecer aos leitores de língua portuguesa a poesia completa da autora publicada até ao momento. O livro divide-se em duas partes principais: a primeira é formada por um conjunto de oito títulos e de um apêndice dedicado aos poemas escritos na adolescência, compreendendo o período entre 1950 e 1990; a segunda parte é formada por um conjunto de seis títulos, compreendendo o período entre 1985 e 2007. Trata-se, por isso, de um volume panorâmico que ordena cronologicamente todos os livros que a autora foi publicando desde 1962, assim como também todos os poemas dispersos e inéditos. É de notar que Isabel Gouveia já havia publicado, no emblemático ano 2000, um volume intitulado Poesia Reunida, no qual seguiu critério idêntico. É hábito comum, na cultura literária portuguesa, os poetas reunirem os livros que vão publicando ao longo da sua carreira em volume compacto; outros, preferem apenas publicar antologias dos poemas que consideram de maior qualidade.
Considero que a opção de Isabel Gouveia foi a melhor, pois este livro permite-nos compreender com clareza as diferentes fases do seu processo criativo. Por outro lado, a autora dá-lhe um título particularmente expressivo pela sua aparente contradição: «na voz da esperança há lágrimas», acentuando, desta maneira, a própria essência da vida, não apenas da sua vida interior, mas também da própria vida humana na sua generalidade, aspecto que confere maior humanismo à sua obra, circunstância que não compromete a autora nenhuma tendência poética específica.
Deve o leitor entender estas «lágrimas» expressas no título, não como um elemento de tristeza, ou de angústia (como foi erroneamente apregoado), mas sim como um elemento de liberdade. Porque essa «voz» é uma voz que se manifesta de uma forma livre, até mesmo quando se submete à rigidez formal do soneto.
É, de facto, com o cultivo do soneto que Isabel Gouveia inicia a sua carreira como poetisa com um livro intitulado Atrás do Tempo (1962), volume que reúne poemas de 1950 até 1962. O soneto é um género poético de proveniência italiana que é praticado em Portugal desde o século XVI e cujo apuramento formal é alcançado com o génio poético de Camões. Sendo um género recorrente na poesia portuguesa, poucos são aqueles que o praticam pela dificuldade formal que exige. Isabel Gouveia apresenta-o no seu livro de estreia com surpreendente brilhantismo pois encontramos neste livro uma voz lúcida que questiona, com determinação, e através de um vocabulário cuidado e elevado, o seu destino individual, não obstante a manifesta juventude do sujeito poético. Temas como a «ânsia de libertação», a «solidão», o «orgulho», a «loucura» ou o «sonho», encontram-se aqui, numa voz intimista da consciência.
A leitura integral da obra poética de Isabel Gouveia permite ao leitor mais esclarecido compreender a virtualidade desta poesia. Se o conteúdo formal dos poemas apresenta, por vezes, algum excesso de palavras por obrigatoriedade do esquema rimático, a capacidade criativa do sujeito poético ameniza algum do excesso vocabular, revelando uma voz que tem sempre muitas coisas para dizer ao leitor. Por esse motivo, não estamos apenas perante uma poesia que não se limita a manifestar sentimentos, mas também ideias; ideias expressas por imagens: «No meu silêncio há sóis a resplandecer, / rios de prata nas lágrimas que choro, / e as mãos débeis, cansadas, com que imploro, / são vulcões de crateras a ferver.» A força das imagens é um aspecto fundamental desta poesia, pois está presente em cada verso uma imagem plena de significação.
Se, no soneto, o sujeito poético segue as regras da tradição, também na prática do verso livre encontramos a aplicação das regras da métrica e da prosódia a ela associada, muito embora o sujeito poético de Isabel Gouveia recorre amiúde à quadra de tom popularizante. É o que acontece no livro intitulado Os Sete Dias Passados (1965), formado ora por tercetos, ora por quadras, ora por oitavas, entre outros versos ainda mais longos, não obstante o rigor da sequência métrica e da sua brevidade silábica. Quanto ao ritmo de leitura, porém, é a quadra que se impõe, mesmo que se trate de um poema longo. À semelhança do que acontece no livro anterior, avultam nestes poemas os valores cristãos. Destacamos, neste livro, o tema da culpa e do perdão, mas também o tema do ódio e da escravidão, a serenidade dos dias, o encontro do sujeito poético consigo próprio. O livro termina com um poema formado por cinco quadras sem espaçamento entre si intitulado «Desencanto», o qual, e à semelhança dos outros, possui uma tonalidade intimista: «[…] Quem me prendeu neste cais / de desencanto sem fim? / Ternura de velho arrais / já não se orgulha de mim.».
O livro breve intitulado Incómoda Verdade (1972), apresenta-nos o mesmo tom confessional, desta vez através de um conjunto de poemas compactos de versos interpolados e de sílabas variáveis. O poema inicial não deixa de ser uma manifestação poética que se aproxima de algo a que podemos chamar uma «litania» poética, dado o uso intensivo do vocativo: «A vós, ó oprimidos que esperais / pelas trompas febris da redenção, / ó pálidos escravos que entornais / vosso cálice em vasos de ignorância […]». O sujeito poético vai fazendo o retrato crítico do mundo, sobretudo no que respeita ao comportamento humano. Os dois últimos poemas deste livro, respectivamente intitulados «A maca de hospício» e «Palhaço e palhaços», confirmam-nos, não apenas a irreverência do sujeito poético perante as convenções do mundo, mas também essa virtualidade de que falávamos acima. O sujeito poético elabora uma tentativa bastante feliz de ensaiar a poesia visual ou concretista que esteve em voga na primeira metade do século XX em Portugal e nalguns países da Europa. Nesses dois poemas avultam a sonoridade e a visualização física do poema, algo que é comparável a um jogo de palavras.
Isabel Gouveia publicou, em meados do decénio de 1970, o livro intitulado Tangentes e Consequentes (1977). Começa por fazer o seu auto-retrato poético, como se de uma pintura se tratasse, um pouco à maneira de Cesário Verde, um dos poetas que a influenciou. Destacamos o poema intitulado «Psicanalítico», poema confessional que questiona a existência: «Hoje sinto a impressão de nada ser, / em confronto com tudo o que me envolve […] / Hoje sinto a impressão de asas quebradas / minhas dúvidas voltam insistentes […]».
Para completar a segunda parte do volume dedicado à poesia completa da autora, seguem-se os Sonetos Imperfeitos Sobre a Noite, o Sol, o Mar e a Paisagem (1950-1965); os Sonetos Sobre a Angústia (1950-1965); os Poemas Vários (1950-1975); outros Poemas Vários (1975-1990); e, enfim, em apêndice, os Poemas da Adolescência (1947-1949), o que não deixa de ser um acto corajoso, pois são escassos os autores que publicam a sua poesia da adolescência. Em todo o caso, trata-se de uma fase que a autora decidiu integrar neste volume por revelar uma vocação criadora bastante precoce. Toda a fase compreendida entre 1950 e 1990 caracteriza-se, por um lado, e do ponto de vista formal, sobretudo pela frequente prática do soneto e, por outro, pelo tom confessional que imprime ao seu labor poético. Tem o leitor que considerar também a atitude ética e interventiva do sujeito. Encontramos neste conjunto temas polémicos como o desprezo que é dado aos poetas, a pobreza espiritual, o confronto hostil entre homens e mulheres, o tempo perdido pela futilidade das pessoas, a vacuidade dos gestos, a intolerância perante a diferença, entre outros. Mas também é uma poesia onde há lugar para a esperança, tal como na abordagem que faz ao eterno tema do amor, físico e espiritual, para a compreensão e para a solidariedade entre os homens. Dir-se-ia que o sujeito poético de Isabel Gouveia nunca baixou os braços perante a dura realidade do mundo, pronunciando-se sobre essa realidade através da força da poesia.
A abrir a segunda parte do volume, o leitor depara-se com um conjunto de poemas intitulado Apontamentos em Verso, os quais compreendem o período que vai de 1985 a 1995. São, na verdade, apontamentos, notas do quotidiano, aqueles que o leitor aqui encontra. Nestes textos o prosaico ocupa o terreno do poético, pois estes poemas em prosa podiam ser fragmentos de páginas de um diário (género literário que Isabel Gouveia também cultiva).
Ainda no domínio daquilo a que a autora define como «fragmento», ou «texto fragmentário», entenda-se, temos o livro intitulado Fragmentos do Passado (2001). De elaboração mais recente, este volume possui um fôlego textual que se distingue dos anteriores, pois a autora revive, em verso, toda a história de Portugal, desde a fundação da nacionalidade até à implantação da República. Trata-se de um livro útil para esclarecer os leitores mais jovens acerca da história do seu país.
Quanto ao livro intitulado Escuta o Coração do Mundo (2005), sem dúvida o título mais bonito de toda a sua bibliografia poética, mantém o tom confessional e interventivo, a reflexão sobre as coisas da vida e do mundo. Na última parte, a autora dedica um grupo de poemas aos poetas portugueses que mais a impressionaram, incluindo dois autores estrangeiros: Pablo Neruda e Virgínia Woolf.
A publicação de A Minha Mão na Tua, em 2006, representa um momento marcante no seu percurso poético. Trata-se de uma homenagem que a autora presta ao companheiro que acabara de perder, circunstância que transforma este livro num documento da maior importância no que se refere à sua expressão poética individual. Os cinquenta e dois poemas que se encontram neste livro breve, mas intenso de afectividade e de paixão, permitem compreender aos seus leitores que o amor é a mais importante manifestação da essência do humano e que nenhum homem poderá prescindir desse sentimento. Neste livro, o sujeito poético de Isabel Gouveia despoja-se de todas as convenções e assume-se na sua inteireza de mulher que ama e se recusa a perder esse amor. Ora todos sabemos que o amor não se explica por palavras, mas apenas por imagens, pequenos indícios, momentos fugazes, resquícios da memória onde se aglutinam muitas memórias de modo a que a paixão possa determinar o seu sentido. Não existe, porém, sentido para a paixão, embora todas as paixões possam ter um sentido íntimo, tão peculiar como o espírito que o enforma. A unidade do espírito confunde-se com a peculiaridade da paixão; é a sempiterna unidade na diversidade.
            Encontra o leitor em A Minha Mão na Tua, não apenas uma experiência amorosa violentamente interrompida, mas também o repositório de toda uma vida que foi construindo o seu próprio saber. E há nele uma sabedoria profunda, tal como se vê nestes versos: «Bem te peço que me digas / como hei-de defender-me / dos espíritos malignos / que acompanham meu / percurso sobre a Terra… / Não desses que partiram e habitam / regiões desconhecidas, / mas sim daqueles que moram nalgum corpo / e se cruzam comigo nesta vida. / Que as suas palavras melífluas, / com a doce calda de açúcar / que envenena, / e os seus gestos untuosos, / não adormeçam o meu entendimento! / Faz com que os meus ouvidos, bem abertos, / percebam as palavras ciciadas / no íntimo dos espíritos / e o porquê desses gestos / que incomodam com seu visco cínico…». Neste livro, que considero uma grande lição de vida, e onde o amor ocupa o lugar principal, e mercê desse despojamento de que falava acima, é a autora a falar na primeira pessoa num diálogo permanente com o seu companheiro. É desta maneira que ela o ressuscita: desenhando o seu retrato por palavras e apoiando-se no poder da memória, uma memória enriquecida por uma vivência comum intensamente partilhada, uma paixão mútua e eterna. Se os primeiros poemas deste livro assumem um tom marcadamente fúnebre, os restantes falam-nos dessa paixão eterna que romanticamente se assume quer na vida quer na morte. E, julgo eu, para além da própria morte, pois todos sabemos que a morte não é o fim, mas apenas e tão só um recomeço.
À semelhança do que acontece no diário de Miguel Torga, também Isabel Gouveia incluiu alguma poesia no terceiro volume do seu diário. Destes «Poemas Datados e Extraídos do Diário Ponte Levadiça» III» (2007), destacam-se os sete poemas de carácter satírico que aí incluiu, sem dúvida outro aspecto da sua virtualidade criadora e que se inscreve na tradição literária portuguesa desde as suas primícias medievais.
A derradeira parte deste volume da sua poesia completa intitula-se Caleidoscópio (Poemário) e compreende poemas que se encontravam inéditos. O título sugere uma grande variedade de temas, algo a que podemos comparar a uma girândola, ou caleidoscópio poético, de carácter autobiográfico. Destacam-se os três poemas agrupados sob o motivo de «Motes imperfeitos» e o «Dicionário futuro». A autora intitula-os «Motes imperfeitos» por terem como mote os versos de três poemas de Natércia Freire. Estes poemas, à semelhança da restante obra poética de Isabel Gouveia, respiram um tom popularizante: «Minha estrada é longa, / passa em mil povoados, / e a minha bagagem, / tão pobre e pesada, / tem dias contados, / não serve a ninguém.». No que respeita ao «Dicionário futuro», formado por seis poemas, pode o leitor encontrar aquilo a que podemos chamar um «hino à palavra», pois a «palavra» é o mote que determina toda a composição. Neste «dicionário futuro», o sujeito poético enaltece a dimensão pura da palavra e compara-a à leveza do incenso.
Assim sendo, e para concluirmos este percurso breve pela poesia de Isabel Gouveia, podemos dizer que a palavra ascende à «purificação». A palavra pura é aquela que sobrevive ao tempo e essa é a esperança que se sobrepõe às lágrimas de que o título nos fala. Trata-se, não apenas de um desejo de redenção pela palavra, mas também do reconhecimento de que só a prática das coisas simples pode trazer mais fecundidade ao mundo. Terminemos com os últimos versos deste volume nos quais se regressa à ideia da palavra como incenso: «Palavras perfeitas […] / em busca da sua foz… / Aí se lançam num mar imenso, / aí se perdem umas das outras. / Sem descobrirem o seu mistério / soltam perfume como de / incenso.».



Sem comentários: