15/10/2020

Conto extraído do livro "Contos para Tardes Brumosas" de Isabel Gouveia, publicado em Agosto de 2020 


O VAGABUNDO E A ÁRVORE


 Só agora descobri que uma rua por onde passo diariamente pode servir de inspiração para uma pintura impressionista. Cores e formas desvirtuadas pela luz e pela borracha de um olhar de relance. O esboroado de algumas paredes tem muito que ver com a técnica usada pelo suposto pintor que habita a minha imaginação. A rua é profunda e vai-se afunilando à medida que a percorro com o meu olhar. Ao fundo, uma figura humana encostada a uma árvore. Parece-me familiar. Imagino-a esguia, ombros curvados, carregando um pesado sobretudo cor de mel que mão caridosa lhe enfiou no corpo, este Inverno.
 Estou impressionada. Como é que não me tinha apercebido disto há mais tempo. Nem tinha dado fé da árvore que agora se encontra despida da sua folhagem, mas ainda serve para abrigar e aquecer com o seu tronco lenhoso a mencionada figura humana. A profundidade da rua toca a minha alma. Sugere-me caminho livre para toda e qualquer ideia ou ousado projecto. Liberdade ilimitada. Mas, quando me disponho a percorrê-la, sinto que as minhas pernas se recusam. Limito-me a contemplá-la com o mesmo espanto de há pouco, tentando não alterar o esboço produzido à pressa, não ligando importância aos pormenores. Não quero devassar-lhe a intimidade e quebrar o encantamento. É melhor gravá-la assim na minha memória, mas com a árvore e a figura humana, esbatidas, ao fundo. Seres vivos e tão diferentes, mas irmanados na dor de sentir o frio.
 Parada numa esquina, tento resolver um problema existencial: para regressar a casa, ou percorro a rua ou me aventuro por caminhos desconhecidos, que me farão perder tempo e paciência. De repente, a figura humana desencosta-se da árvore e começa a caminhar. Será o mesmo sobretudo cor de mel que se arrasta pela calçada portuguesa, reparada de fresco? A figura que era pouco nítida e irreal começa agora a tornar-se cada vez mais real e plausível. Caminha, cambaleando. Parece um bêbado, ou um sonâmbulo alheado de tudo à sua volta. À medida que se aproxima, os seus traços físicos e fisionómicos começam a desenhar-se. O que a distância havia esbatido, na tela do meu imaginário pintor, vai ressurgindo lentamente. A agressividade dos traços reaparece. O homem não é mais um boneco, uma figura de quadro. É um vagabundo. Cara pouco amigável. Mãos nos bolsos. Pernas bambas. À medida que se aproxima, começa a emitir alguns sons estranhos. Sons graves e incompreensíveis. Mas é fala humana, rouca, provinda das profundezas e atravessando uma garganta arranhada por um destino adverso. Sou tentada a virar as costas à rua, àquela que o meu coração descobriu tardiamente. Mas não consigo tomar outro caminho. É melhor esperar que a figura humana se aproxime um pouco mais, o bastante para poder confirmar o meu reconhecimento. 
A figura de sobretudo cor de mel a rondar o chão já está muito perto. Os seus traços fisionómicos estão definidos. Tenho medo do homem que encarna a imagem humana dessa pintura fantástica. É um bêbado incorrigível. Costuma ameaçar-me se não lhe passo para as mãos, sempre sebentas, pelo menos uma nota de cinco euros. Mas porque é que não consigo largar a esquina, onde simulo examinar a montra que forma um ângulo recto? Parece que estou à espera do encontro. Talvez o homem assim o entenda, também. Talvez pense que tive um rebate de consciência. Da última vez que nos vimos recusei-me a dar-lhe dinheiro, que iria consumir em cerveja, no supermercado mais próximo. Insultou-me. Chamou-me nomes feios. Inventou coisas que poderiam prejudicar-me. Fez chantagem comigo. Virei-lhe as costas com desprezo. Pelo menos na aparência, simulei indiferença. Agora as minhas pernas tremem, mas os meus pés recusam-se a mudar de sítio. Não duvido de que o homem julga que estou à sua espera, para reparar o meu erro e evitar algum dano. Mas quem dará crédito a um vagabundo louco? E que outra coisa poderá fazer senão agredir-me de boca? Já se encontra muito próximo de mim. Olho para a sua cara. E o que é que vejo? E o que é que oiço? Olhos murchos, faces encovadas, pele amarelecida, cabelo sujo, boca soltando urros que parecem de animal ferido. O sobretudo arrasta-se pelo chão, porque a sua magreza se tem acentuado de tal modo que os ombros já não se parecem sequer com um adequado cabide. 
A árvore ao fundo permanece séria e impenetrável. Gostaria de saber o que diria de tudo isto, se tivesse cérebro e pudesse falar. O homem passa muito perto de mim, arrastando as pernas e o sobretudo cor de mel. Lança-me um ostensivo olhar de raiva e desprezo, cospe no chão, urra de novo, profere palavras ininteligíveis, pára por uns momentos e depois segue o seu trajecto. Eu demoro o meu olhar na pedra onde presumo que a saliva caiu, e não posso deixar de sentir alguma culpa, aliada ao nojo… O homem lá segue o seu caminho, e eu continuo sem ânimo para atravessar a rua que hoje, pela primeira vez, me encantou e obrigou a repensar a diferença entre a realidade humana e uma simples paisagem impressionista.

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