1.
Vicissitudes históricas
No registo predial português sempre existiu o princípio do trato sucessivo, no respeitante à continuidade das inscrições. Mas quanto à outra modalidade que o caracteriza, reconhecida nas legislações mais avançadas, referente a um limite temporal para a “primeira inscrição”, foi o legislador do Código do Registo Predial de 1959 (vigente a partir de 1-1-1960) quem pela primeira vez se debruçou sobre a necessidade de o estabelecer, fixando a data a partir da qual tinha de se fazer constar do registo o encadeamento dos sucessivos actos de transmissão dos prédios. Com efeito, o princípio do trato sucessivo, que já existia nos códigos anteriores, aparece, pela primeira vez, numa disposição de lei que ordena e sistematiza em dois parágrafos (n.ºs 1 e 2 do artigo 13º) as duas modalidades em que esse princípio passou a actuar: obrigatoriedade da prévia inscrição de aquisição (que neste trabalho também designaremos por “primeira inscrição”); e obrigatoriedade do relato do historial dos prédios, desde essa mesma inscrição até à actual, através do registo sucessivo de todos os actos pelos quais se transmitem os bens imobiliários.
O Código de 1959 (artigos 13º e 280º) estabeleceu, pois, a data de 1-1-1960 como limite a partir do qual não era possível realizar definitivamente o registo de actos pelos quais se transmitissem direitos ou contraíssem encargos sobre bens imóveis, sem que os bens transmitidos ou onerados se encontrassem definitivamente inscritos a favor do transmitente
[2] ou de quem os onerava. E, assim, a primeira inscrição, necessária por imposição da lei, no domínio desse Código, passou a ser a respeitante ao último acto celebrado antes de 1960. Era a partir daí que se processava o relato das vicissitudes sofridas pelo prédio, durante o percurso da sua existência. O legislador desejava que esse relato fosse fiel à realidade jurídica e material, não se devendo omitir qualquer transmissão. E para que pudessem ser inscritos quaisquer ónus sujeitos a registo, quer aqueles que só depois de registados produziam efeitos entre as partes (cfr. hipoteca, art. 6º, n.º 2 desse Código), quer os outros, era sempre necessário que os bens estivessem inscritos a favor de quem os onerava voluntariamente.
É claro que na mente do legislador existia a ideia de que, uma vez obrigadas as pessoas a recuar no tempo (data anterior a 1-1-1960), eram elas próprias que, daí em diante, estabeleceriam como regra de conduta imperiosa a obrigação de se dirigirem à conservatória do registo predial competente, sempre que pretendessem realizar um acto de transmissão ou oneração. Só desse modo a regra passaria a ter um efeito útil, contribuindo para minorar, e mesmo a longo prazo erradicar, a doença tradicional que consistia no fraco interesse e respeito que o público nutria pela instituição do Registo Predial.
Por outro lado, a situação não era precisamente a mesma em todo o país, pois existiam alguns concelhos onde o registo se tornara obrigatório, por neles já se encontrar em vigor o cadastro geométrico da propriedade rústica (Decreto-Lei n.º 36 505, de 11 de Setembro de 1947, Lei n.º 2049, de 6 de Agosto de 1951, e Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956), sendo punida com determinadas sanções a falta de registo nos prazos legais. O Código de 1959 integrou esse sistema já modificado e aperfeiçoado pelo Decreto-Lei n.º 40 603, nos seus artigos 14º e seguintes.
Nos restantes concelhos, onde não existia o cadastro geométrico, não se tendo estabelecido quaisquer sanções para a falta do registo dos actos realizados a partir daquele que determinara a primeira inscrição imposta por lei, nada se modificou. Os hábitos ancestrais do nosso povo continuaram na mesma e, de certo modo, até se agravaram as dificuldades nas conservatórias. Passaram a existir mais situações de trato sucessivo interrompido, dando origem a longos requerimentos em que tinham de ser pedidos todos os registos dos actos em falta, com consequências desastrosas para o bom andamento das repartições.
As entidades competentes nunca se preocuparam com a inelutável realidade de que a lei não pode determinar a imediata transformação da mente dos destinatários. Estabelecer um marco temporal para a inscrição prévia, que também poderemos designar como “primeira inscrição” (embora esta terminologia assuma uma maior latitude), sem forçar os titulares de bens imóveis a pedir o registo dos actos daí em diante realizados, não só constituía perda de tempo como até contrariava os fins pretendidos.
Partindo da sua verdade, que consideravam incontestável, de que num sistema de registo declarativo não era admissível (nem conveniente) impor a realização do registo, pelo menos nos concelhos onde não vigorasse o cadastro geométrico, os legisladores e os intérpretes da lei, teoricamente considerada avançada no seu tempo (artigos 13º e 280º do Código de 1959), passaram a debruçar-se apenas sobre os seus aspectos formais e sobre os limites da sua previsão, o que deu origem a pareceres, recomendações e encontros privados de conservadores zelosos, que discutiam as disposições do Código, mas sempre à luz da “interpretação superior” que lhes era veiculada.
Em 1967, foi alterado o Código de 1959, pelo Decreto-Lei n.º 47 611, de 28 de Março. Na intenção de aperfeiçoar os aspectos formais a que nos referimos, foi modificado o n.º 1 do artigo 13º. Na realidade, pouco ou nada se alterou. Na opinião da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado,
o objectivo da alteração foi o de bem estremar o campo de aplicação do preceito, dando, aliás, acolhimento legal à orientação estabelecida pela Direcção-Geral, na vigência do Código anterior (p. 42 do Código do Registo Predial anotado por essa Direcção-Geral). Continuou a ser elaborada e transmitida pelos serviços de inspecção a interpretação oficial sobre o real conteúdo do princípio do trato sucessivo, nas suas duas modalidades, concluindo-se que:
1- Só era necessário o registo prévio quando estivesse em causa um negócio jurídico efectuado depois de 1-1-1960, pelo qual se transmitissem direitos ou contraíssem encargos sobre bens imóveis.
2- O registo prévio tinha que basear-se em acto anterior a 1960.
3- Não era necessário o registo prévio quando o acto submetido a registo fosse uma transmissão mortis causa, ainda que proveniente de sucessão testamentária, pois nesse caso não é determinada por uma declaração negocial, mas pela lei, como efeito imediato da morte do autor da herança.
4- Também não era necessário o registo prévio quando o facto submetido a registo fosse de natureza coerciva, consequente a processo de execução ou expropriação.
5- A partir da inscrição prévia era obrigatório inscrever todo o historial do prédio, nunca se admitindo inscrição definitiva sobre o mesmo sem a intervenção do respectivo titular (com inscrição de transmissão, domínio ou mera posse), ou o suprimento dessa intervenção, salvo se o facto a inscrever fosse consequência de outro já anteriormente inscrito.
O Código de 1984, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho (em vigor desde 1-10-1984), alterou substancialmente o condicionalismo do princípio do trato sucessivo, na modalidade da inscrição prévia. A inexistência do cadastro da propriedade rústica em grande parte do território nacional, e da propriedade urbana em todo esse território, e o desinteresse pelo registo, a não ser nos concelhos onde, por ser obrigatório, se haviam estabelecido sanções para a sua falta ou atraso, conduziu a uma tal premência na solução de dificuldades, que se julgou imperioso situar o marco temporal da primeira inscrição imposta por lei numa data mais próxima.
E foi assim que, relativamente aos registos de aquisição, o mesmo passou para 1-1-1984, tornando-se necessária a inscrição prévia a favor de quem transmitisse os bens, apenas nos casos de negócios jurídicos titulados a partir dessa data [alínea b) do artigo 35º, segundo a redacção que tinha, ao tempo], desde que não tivesse havido justificação do direito, pois nessa hipótese também era dispensada tal inscrição [alínea a) do mesmo artigo 35º]. Quanto aos registos de constituição de encargos por negócio jurídico, manteve-se a indispensabilidade da inscrição prévia, fosse qual fosse a data da titulação.
[3]
Esta alteração originou alguma polémica, pela discrepância que determinava, relativamente ao período situado entre 1-1-1960 e 1-1-1984, porque os actos de aquisição celebrados durante esse período, que, pelos Códigos de 1959 e 1967, exigiam o registo prévio (acto anterior a 1960), passaram a entrar directamente no registo sem dependência dessa formalidade. As pessoas mais diligentes ou forçadas por prementes dificuldades, que haviam feito os seus registos ao abrigo dos códigos anteriores, sentiam-se lesadas em face de outras que, por força da sua inércia ou da sua sorte, obtiveram um ganho imerecido.
Para que não se agravassem as consequências da fuga ao registo, o Código de 1984, no seu artigo 9º, criou um sistema de obrigatoriedade indirecta, relativamente a todos os prédios, tanto urbanos como rústicos, cadastrados ou não, que designou por “legitimação de direitos sobre imóveis”. Esse Código acabou com o regime duplo: registo obrigatório em certos pontos do país e registo facultativo nos restantes. Esta obrigatoriedade indirecta estendeu-se a todo o território, nunca sendo possível (salvo algumas excepções) titular actos de transmissão de direitos ou de constituição de encargos sobre imóveis, sem a inscrição definitiva a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. No entanto, o não cumprimento desta disposição nunca foi passível de outras sanções que não fossem de ordem disciplinar, destinando-se apenas a preparar as mentalidades para outro tipo de obrigatoriedade, com consequências jurídicas relevantes. Desde modo, se os notários, no geral, sempre a cumpriram escrupulosamente, já o mesmo não sucedeu, pelo menos a princípio, com outras entidades, como os tribunais, ainda que lhe reconhecessem o mérito. A obrigatoriedade indirecta do registo veio limitar o campo de aplicação do registo prévio, já que, depois de 1-10-1984 a titulação dos actos (com algumas excepções), pelo menos por via notarial, não era feita sem que os bens se encontrassem inscritos a favor de quem os transmitia ou onerava.
O legislador, na intenção de “simplificar” ainda mais o processo de obtenção do registo, na alteração introduzida no Código de 1984 pelo Decreto-Lei n.º 60/90, de 14 de Fevereiro, modificou novamente o princípio do trato sucessivo (artigo 34º), na modalidade da inscrição prévia, acabando praticamente com esta, no caso de registos de aquisição de direitos. Manteve-a para os casos de constituição de encargos por negócio jurídico. Mas manteve-a também no caso de registos de aquisição titulados com urgência, por motivo de perigo de vida dos outorgantes, por nessa hipótese a titulação ser efectuada sem dependência do registo a favor da pessoa de quem se adquire o direito [citado artigo 9º, n.º 2, alínea c)]. Eliminou-a, porém, noutros casos de excepções ao princípio do artigo 9º, em que a titulação não depende igualmente de inscrição prévia, mas exige a prova documental do direito da pessoa de quem se adquire [n.º2, alínea b) e nº 3].
[4]
O Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, alterou de novo o artigo 34º do Código do Registo Predial. Segundo a nova versão, a inscrição prévia continua a ser exigida para a constituição de encargos por negócio jurídico. No caso de registos de aquisição, passou a ser sempre exigido o registo a favor de quem transmite os bens, embora com as seguintes excepções:
a) Quando tiver sido apresentado, perante os serviços de registo, documento comprovativo do ´ direito do transmitente
[5];
b) Quando o registo de aquisição se basear em partilha.
A nosso ver, a expressão "tiver sido apresentado" pode suscitar algum reparo, sobre o qual não iremos agora pronunciar-nos. Entendemos, porém, que a intenção do legislador foi subtrair ao regime da inscrição prévia os seguintes casos:
1. Casos de urgência devidamente verificada por perigo de vida dos outorgantes, quando for apresentado, ao requerer-se o registo, o documento comprovativo do direito da pessoa de quem se adquire os bens.
2. Actos de transmissão (por negócio jurídico, como parece óbvio) por quem tenha adquirido no mesmo dia os bens transmitidos, quando igualmente se apresentar, ao requerer-se o registo de aquisição, documento comprovativo do direito da pessoa de quem se adquire.
3. Tratando-se de prédio situado em área onde não tenha vigorado o registo obrigatório, o primeiro acto de transmissão posterior a 1 de Outubro de 1984, efectuado nos termos do n.º 3 do artigo 9º, quando também se apresente o documento comprovativo do direito da pessoa de quem se adquire.
Em que aspectos a nova redacção do artigo facilitou a vida aos registantes? No caso do n.º 1, atrás mencionado, verifica-se alguma simplificação. Também no regime anterior, para se realizar, neste caso, o acto de transmissão, era dispensado o registo prévio (al. c) do n.º 2 do artigo 9º). No entanto, depois, o serviço de registo exigia sempre a inscrição a favor da pessoa de quem se tinha adquirido o direito. Agora não será necessário efectuar essa inscrição, bastando apresentar documento comprovativo de que quem transmitiu o direito era efectivamente o seu titular.
[6]
No caso do n.º 2, para outorgar o acto de que resultasse transmissão de direitos sobre imóveis, efectuada por quem os adquirisse no mesmo dia, já era dispensada a inscrição prévia a favor da pessoa que transmitia os bens (alínea b) do n.º 2 do artigo 9º). E segundo a redacção que o Decreto-Lei n.º 60/90 conferiu ao artigo 34º, para inscrever na conservatória o facto jurídico aquisitivo, também não era obrigatório, nesse caso, realizar a inscrição prévia. Mas agora, na redacção do Decreto-Lei n.º 116/2008, esse registo é obrigatório, a não ser que seja apresentado o documento comprovativo do direito da pessoa de quem se adquire.
Não se observaram, neste caso, as regras do famoso “simplex”, que reprova a duplicação de actos praticados em mais que uma repartição. Poderia considerar-se como documento bastante a existência do título pertencente a quem transmite os bens, uma vez referido em documento notarial. Isto, ao abrigo do princípio da fé pública que norteia a respectiva Instituição, e de um outro não menos importante princípio, ainda não baptizado com um nome próprio, mas que consiste numa economia de exigências burocráticas. No entanto, valha-nos isso, neste caso o legislador esteve atento à circunstância de que o conservador do registo predial é um lídimo detentor das funções de garante da segurança jurídica.
O caso do n.º 3 suscita maiores dificuldades e objecções. Na anterior redacção do artigo 34º (cfr. Decreto-lei n.º 60/90), não seria necessário, em nenhuma circunstância, efectuar o registo prévio a favor da pessoa de quem se adquire o direito. Actualmente, observando o que consta da lei, esse registo é sempre necessário, a não ser que se apresente documento comprovativo do direito da pessoa que transmite o direito, o qual pode ser substituído pela prova da justificação simultânea. Mas como referimos, ao tratarmos do caso anterior, existem alguns juristas para quem não seria de todo inaceitável que fosse considerado bastante o título notarial de transmissão, em que se atesta a existência do direito do outorgante transmissor, através de documentos apresentados no cartório.
Pelo menos relativamente aos casos não abrangidos pelas excepções ao nº1 do artigo 9º, o Decreto-Lei n.º 116/2008 não veio facilitar a vida aos registantes. A não ser que, abusivamente, se faça uma mirabolante interpretação, assente num conceito de não retroactividade verdadeiramente insólito, e se modifique a lei por um mero despacho. No entanto, salvo disposição em contrário que, salvo erro, não existe, as actuais disposições do Código do Registo Predial aplicam-se a todos os registos requeridos durante a sua vigência… De resto, uma “providencial” interpretação, ainda que pareça lícito justificá-la pelo recurso ao espírito da lei, não tem a mínima correspondência nos termos que esta utiliza.
Como atrás foi dito, pelo Código de 1959, alterado pelo Decreto-Lei n.º 47611, de 28 de Março, já só era necessário o registo prévio quando estivesse em causa um negócio jurídico efectuado depois de 1-1-1960, pelo qual se transmitissem direitos ou contraíssem encargos sobre bens imóveis.
Pelo Código de 1984, a inscrição prévia a favor de quem transmitia os direitos passou a ser necessária apenas nos casos de negócios jurídicos titulados a partir de 1-1-1984 [alínea b) do artigo 35º- ao tempo].
Ora, pela actual redacção do nº 2 do artigo 34º, a inscrição prévia é sempre necessária em todos os casos em que não se apresente documento comprovativo do direito da pessoa de quem se adquire o direito.
Assim, se A apresentar nos serviços de registo um negócio jurídico de aquisição com data anterior a 1960, terá, por força da lei, a obrigação de apresentar também documento comprovativo do direito da pessoa que lhe transmitiu os bens. Se tivesse efectuado o registo até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, não teria sido preciso tal documento. Onde ficou o “simplex”, tão apregoado e a funcionar em casos de maior gravidade para a segurança jurídica registral? Que remédio haverá para isto, a não ser rectificar uma lei manifestamente errada ou incompleta? Será que houve a intenção de atribuir força acrescida aos meios de suprimento dos títulos de aquisição, apesar das fraudes que tal situação acarreta? Na verdade, se vier a modificar-se a lei por um simples despacho, isso será ceder a uma abusiva interpretação que viola os princípios por que se rege a esfera jurídica.
2.
Meios de suprimento de títulos
Perguntar-se-á se foi fácil pôr em funcionamento a regra do n.º 1 do artigo 13º dos Códigos de 1959 e 1967. Não teriam os interessados dificuldades para a obtenção de documentos para o registo prévio, e também para as inscrições intermédias até àquela que determinava o pedido de registo?
É claro que sim. Dificuldades idênticas já haviam surgido anteriormente, com o estabelecimento do regime de registo obrigatório, nos concelhos onde vigorava o cadastro geométrico. Foram logo criados expedientes extrajudiciais, pela Lei n.º 2049, de 6 de Agosto de 1951 (artigo 27º), que se tornaram mais tarde extensivas ao registo facultativo, pelo artigo 20º do Decreto-Lei n.º 40603, de 18-5-1956,
[7] mas apenas com relação a direitos constantes da matriz e adquiridos anteriormente à publicação desse Decreto, sobre prédios não descritos, ou descritos mas sem qualquer inscrição de transmissão, domínio ou posse.
Para assegurar aos interessados um meio de solucionar o impasse gerado pela falta de documentação para o registo dos prédios, foi criado, pelo Código de 1959, um outro expediente: o processo de justificação judicial (artigos 198º e seguintes), que teve por fonte a experiência colhida na aplicação do processo especial de justificação de domínio, criado pelo Decreto n.º 4619, de 13-7-1918, e que, depois de várias vicissitudes, passou a ser regulado sob a forma descrita no artigo 209º do Código do Registo Predial de 4 de Julho de 1929, aprovado pelo Decreto n.º 17070.
Mas o Código de 1959, além do processo de justificação judicial, admite também a escritura de justificação notarial, que define como a declaração feita em escritura pública pelo sujeito de direito constante da matriz ou por quem o represente, e confirmada por mais três declarantes, que o notário reconheça idóneos, em que se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito de que se trata, especificando a causa da aquisição e as circunstâncias que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais (citado artigo 198º e artigo 210º, n.º 1).
Tanto o processo judicial como a escritura de justificação poderiam ser utilizados no caso de direitos sobre prédios não descritos, mas também no caso de ser preciso reatar o trato sucessivo interrompido.
O Código de 1959 ampliou o campo de aplicação da justificação notarial. A princípio só se aplicava aos direitos constantes da matriz, adquiridos anteriormente ao Decreto-Lei n.º 40603, mas deixou de sofrer essas limitações. Muito embora circunscrita aos casos em que os direitos se encontrassem na matriz em nome do justificante (artigo 209º), deixou de depender da data em que tivesse ocorrido essa inscrição matricial. Podia também outorgar a justificação quem tivesse adquirido o alegado direito do titular constante do Fisco, por sucessão ou acto entre vivos [n.º 2 do artigo 210º e artigo 102º (ao tempo) do Código do Notariado].
Por outro lado, os registos efectuados com base na justificação deixaram de ser provisórios, como ordenava o parágrafo 7º do artigo 20º do Decreto-Lei n.º 40603, instituindo-se apenas um regime de publicação da escritura com obediência a certos requisitos e a expensas dos interessados, num dos jornais mais lidos da sede do respectivo concelho (artigo 212º do Código de 1959). Se algum interessado impugnasse o direito justificado, deveria requerer que o juiz oficiasse imediatamente ao notário a dar conhecimento da pendência da oposição (artigo 213º, nº 1). Da escritura não poderia ser extraída qualquer certidão, desde que pelo notário fosse recebida essa comunicação, ou, de qualquer modo, sem haver decorrido o prazo de trinta dias sobre a data do número do jornal em que tivesse sido feita a publicação do seu extracto (artigo 213º, n.º 2).
O Código de 1967 manteve estes expedientes nas suas linhas gerais, mas no n.º 2 do artigo 204º estabeleceu expressamente que às inscrições efectuadas com base em justificação judicial ou notarial não se aplicava a disposição do n.º 1 do artigo 13º (regra da obrigatoriedade do registo prévio). Por outro lado, passou apenas a impedir o recurso à justificação notarial tratando-se de actos que, tendo obrigatoriamente que constar da matriz, nos termos da lei fiscal, não estivessem efectivamente nela inscritos (artigo 215º).
O processo de justificação judicial foi entretanto relegado para diploma próprio, o Decreto-Lei n.º 284/84, de 22 de Agosto.
[8]
Ora, como se sabe, o Decreto-lei n.º 284/84 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 273/2001, de 13 de Outubro, e as normas respeitantes à justificação judicial fazem hoje parte do processo constante do Código do Registo Predial (Artigos 116º e seguintes), o que não significa que se tenham atribuído funções judiciais ao conservador do registo predial. O processo regulado pelo Código do Registo Predial é um mero processo administrativo, como adiante veremos, e só quando existe oposição ou recurso é que o tribunal passa a actuar.
Mas o Código de 1984 manteve igualmente as escrituras de justificação como um dos expedientes para suprir a falta do título necessário para o registo (artigo 116º), tendo sido alterado o regime da sua publicação, que passou outra vez a ser feita através de editais, afixados nas conservatórias do registo predial competentes e nas sedes das juntas de freguesia da situação dos prédios (artigo 109º do Código do Notariado, ao tempo). Contudo, os editais foram outra vez substituídos pela publicação em determinados jornais, aquando da reforma introduzida no Código do Notariado pelo Decreto-Lei n.º 67/90, de 1 de Março.
Actualmente, o Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º207/95, de 14 de Agosto, e posteriormente rectificado e alterado por vários diplomas, exige que a publicação seja feita num dos jornais mais lidos do concelho da situação do prédio, ou, se aí não houver jornal, num dos jornais mais lidos da região (artigo 100º, n.º 2).
No caso de reatamento do trato sucessivo ou de estabelecimento de novo trato, quando se verificar a falta de título em que tenha intervindo o titular inscrito, a escritura não pode ser lavrada sem a sua prévia notificação, efectuada pelo notário, a requerimento, escrito ou verbal, do interessado na escritura (n.º 1 do artigo 99º). As notificações são feitas nos termos gerais da lei processual civil, aplicada com as necessárias adaptações (nº 5 do art. 99º). A notificação edital é feita pela simples afixação de editais, pelo prazo de 30 dias, na conservatória competente para o registo, na sede da junta de freguesia da situação do prédio e, quando se justifique, na sede da junta de freguesia da última residência conhecida do ausente ou falecido (nº 7 do artigo 99º).
3.
Vantagens e desvantagens da justificação.
Perversões do sistema
Normalmente, nas escrituras de justificação para a primeira inscrição, assim como naquelas que se destinam a reatar o trato sucessivo ou a estabelecer um novo trato, bem como no processo registral que existe com a mesma finalidade (artigos 116º e seguintes do Código do Registo Predial) indica-se a usucapião como causa de aquisição do direito invocado. A justificação com esse fundamento passou a ser o “pão-nosso” de cada dia. Compreende-se que assim seja, se atentarmos num exemplo já gasto, mas bem elucidativo. Assim, se o interessado alegar uma compra ou uma doação verbais, a justificação será improcedente, a não ser que se invoque simultaneamente a usucapião. Mas já temos visto decisões de conservadores do registo predial que põem objecções a este duplo motivo, porque entendem que isso retira certeza ao fundamento da justificação. Uma compra e venda ou uma doação verbais são actos feridos de nulidade. Assim, se não forem invocadas circunstâncias que o legislador, ou os responsáveis governamentais, dentro do âmbito jurídico-registral, considerem que constituem verdadeiros impedimentos à apresentação do título legítimo, a alegação de tais actos ilegais não pode atribuir procedência ao pedido. Porque assim é, na generalidade dos casos, o justificante, para evitar problemas, alega sempre a usucapião, mesmo que ainda não tenha decorrido o prazo legal para a mesma. Infelizmente, a justificação passou mesmo a ser implementada nos casos em que existe título do direito, mas o mesmo está errado e é preciso rectificá-lo. Nos casos em que falta apenas justificar o direito do transmitente, por vezes os outorgantes são aconselhados a “simplificar”, realizando a justificação do seu próprio direito, para o qual não é impossível obter um título legítimo.
Não vamos referir-nos desenvolvidamente aos trâmites do processo administrativo, porque estão bem explícitos nos artigos 117º-B e seguintes do Código do Registo Predial. Mas é de assinalar o facto de que, caso a justificação se destine ao reatamento ou estabelecimento de novo trato sucessivo, também é notificado o titular da última inscrição, quando se verifique falta de título em que ele tenha intervindo, procedendo-se à sua notificação edital ou à dos seus herdeiros, independentemente de habilitação. Isto na hipótese, respectivamente, de esse titular estar ausente em parte incerta ou ter falecido. A notificação é igualmente feita nos termos gerais da lei processual civil (artigo 117º-G, nº 3). As notificações editais são feitas nos mesmos termos já referidos para a justificação notarial: afixação de editais pelo prazo de 30 dias, no serviço de registo da situação do prédio, na sede da junta de freguesia da situação do prédio e, quando se justifique, na sede da junta de freguesia da última residência do ausente ou falecido (artigo 117º-G,nº 6).
O processo registral é em grande parte semelhante às diligências que se desenvolvem no cartório notarial. Mas difere em alguns pontos: nesse processo, os interessados podem deduzir oposição na conservatória, nos 10 dias subsequentes ao termo do prazo da notificação (artigo 117º-H, nº 1) e, se houver oposição, o processo é declarado findo, sendo os interessados remetidos para os meios judiciais (n.º 2 desse artigo). No caso da justificação notarial, os interessados só podem impugná-la judicialmente (artigo 101º do C. Notariado), mas a impugnação pode ser realizada sem dependência do prazo de 30 dias sobre a data em que o respectivo extracto for publicado. É esta a opinião geral dos órgãos jurisdicionais, apesar do disposto no n.º 2 do artigo 101º do Código do Notariado.
Que o processo regulado pelo Código do Registo Predial é um mero processo administrativo, disso não temos dúvidas. A decisão proferida pelo conservador, no âmbito de tal processo, não pode equiparar-se a uma decisão judicial, passível de transitar em julgado. O conservador não exerce funções jurisdicionais. Não interessa o facto de que, tornando-se a decisão definitiva, são efectuados oficiosamente os consequentes registos, nem o facto de a decisão do processo de justificação ser publicada, oficiosa e imediatamente, num sítio da Internet, em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça. (nºs 6 e 7 do artigo 117º-H).
É claro que, sempre que haja oposição, os interessados são remetidos para os meios judiciais. Isto, tanto no caso de a oposição ser deduzida antes da própria inquirição das testemunhas (nºs 2 e 3 do artigo 117º-H), como no caso se a decisão já ter sido proferida e tornada definitiva. Também nessa hipótese, o Mº Pº e qualquer interessado podem recorrer, dentro do prazo legal, para o tribunal de 1ª instância competente na área da circunscrição a que pertença a conservatória onde pende o processo (artigo 117º-I, nº 1). Então, sim, será desenvolvido um processo judicial, cuja sentença, uma vez transitada em julgado, em princípio terá que prevalecer, salvo se existirem disposições legais que permitam a sua reapreciação.
Mas, se o interessado não tiver conhecimento da justificação e, só por isso, não recorrer, vê-se a braços (e não sabe como actuar) com uma decisão puramente administrativa, em que a decisão do conservador do registo predial atribui ao justificante um direito que pode não existir. Não lhe confere um título totalmente eficaz do direito de que ele se arroga possuidor. É precisamente o mesmo que se passa com a justificação notarial. Nesta matéria, os poderes do conservador não são mais amplos do que os poderes do notário que realiza a escritura de justificação.
Não devemos disfarçar estes problemas com “panos quentes”, simulando aconselhar, ou estimular, o brio dos notários, conservadores, advogados e solicitadores, no sentido de tomarem mais atenção à gravidade das falsas declarações, evitando-as e detectando-as atempadamente. Ninguém é dono das mentalidades alheias, nomeadamente de declarantes ou testemunhas, que até julgam prestar um meritório serviço cívico quando mentem, ou quando afirmam o que desconhecem, mas lhes ensinaram…Todos temos o país que merecemos. E neste lindo país em que nascemos e vivemos tem havido um autêntico viveiro de mentiras, burlas e corrupções. Se isso até acontece nas altas esferas do poder, por que razão admitir que quem se encontra numa esfera inferior é sempre honesto e verdadeiro? Não sejamos demagógicos. O legislador, no domínio da justificação de direitos, está mentalizado para o facto de que esta propicia uma enorme insegurança, e precisamente no âmbito do registo predial, que, ironicamente, é uma instituição destinada a garantir a segurança jurídica.
Por isso, o que não se compreende é que, em vez de se criarem mecanismos que façam diminuir o ritmo a que se processa o recurso à justificação, até se lhe atribua, pelo contrário, uma redobrada energia, sem se terem em vista os “males” que isso acarreta. Nunca nos esqueceremos duma expressão (politicamente incorrecta, como agora se diz) saída da boca de um ajudante do registo predial, no ano de 1960, ao aconselhar um registante em apuros do seguinte modo: “Porque é que não recorre a uma escritura de mentira?” Tal expressão, tão sincera e verdadeira, influenciou sempre a nossa visão sobre os perigos do recurso a esses meios de suprimento de título. Mais tarde, confrontámo-nos com outra situação ainda mais elucidativa: tivemos entre mãos uma fotocópia duma escritura em que se justificava por usucapião a propriedade de um prédio urbano, e em que o justificante afirmava, e os declarantes confirmavam, que ele sempre tinha cultivado o seu prédio e colhido os seus frutos… Pensamos que nada mais é preciso dizer. O silêncio é o melhor argumento.
Criaram-se também, pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, outros expedientes destinados a promover o ingresso no registo dos prédios que constituem o mapa territorial português, aos quais poderíamos chamar “ingénuos”, se não tivessem apenas em vista gerar uma aparência de facilitação. Assim, instituiu-se uma obrigatoriedade de registo extremamente falível (artigos 8º-A e seguintes do Código do Registo Predial, alterado pelo citado Decreto-Lei nº 116/2008), porque o não cumprimento da obrigação de promover a inscrição no registo só causa a penalização financeira de algumas, e não de todas as entidades obrigadas a isso. Mantêm-se os actos de titulação absolutamente intocáveis, mesmo sem inscrição quando, na verdade, o desiderato pretendido só poderia ser conseguido se tais actos, quando e enquanto não registados, viessem a sofrer de ineficácia.
Cumprindo o mesmo desiderato de “lavar as mãos”, veio o legislador dotar o sistema de meios que atribuem grandes facilidades económicas a quem registe factos ocorridos antes da publicação do Decreto-Lei n.º 116/2008. Tais actos são gratuitos se forem pedidos antes de 2 de Dezembro de 2011. Serão igualmente gratuitos, desde que pedidos dentro do mesmo prazo, os registos de primeira inscrição (aqui a expressão é usada no mais lato sentido) e os decorrentes de justificação de direitos, ainda que os factos tenham ocorrido após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008 (nºs 2 e 3 do seu artigo 33º).
O silêncio que a nível oficial se tem feito, nos meios de comunicação, sobre a mencionada isenção de emolumentos, leva a crer que estas medidas constituem mera “fachada” para iludir alguns, que não aqueles que continuam a acreditar que se pode recorrer a outras medidas, para implementar o hábito de frequentar os serviços do registo predial. É claro que há referências na Internet, feitas sobretudo por particulares, mas esse meio não é acessível à generalidade da população inculta.
Já se viu que idênticas facilidades, outrora concedidas, nunca lograram convencer o Zé-Povinho, que não acredita nas virtualidades do registo, dentro dum sistema que se tem progressivamente afastado das normas de segurança jurídica. Normalmente, quem se abeira dos serviços de registo é porque não tem outro meio para poder transaccionar ou onerar os seus direitos, ou deseja adquirir aqueles que lhe interessam. Neste último caso, pelo menos na hipótese de a aquisição ser efectuada por negócio jurídico, por via de regra ninguém poderá deixar de obter a sua própria inscrição, que é promovida pela entidade que lavrou o título. Do mal, o menos. Alguns pontos, ainda que insuficientes, foram retirados à percentagem de abstenção que existe em matéria de registo dos bens.
4.
APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DO ARTIGO 7º DO C.R.P. AOS REGISTOS EFECTUADOS COM BASE NUMA JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL E NA JUSTIFICAÇÂO EFECTUADA ATRAVÉS DO PROCESSO REGISTRAL.
Como vimos, o processo administrativo de justificação (artigos 116º e segs. do Código do Registo Predial) não atribui ao registante um título verdadeiramente eficaz para comprovar o seu direito, mas apenas como que um “sucedâneo” de título, que pode vir a ser contestado por quem seja o verdadeiro titular. Pelo menos, desde que não tenha havido subaquisições protegidas pelo princípio da fé pública registral. A este respeito, como também já foi referido, o processo administrativo não pode conferir mais direitos do que uma escritura de justificação notarial. Aplicam-se-lhe os mesmos princípios e a mesma jurisprudência.
No acórdão do S.T.J., unificador de jurisprudência, nº 1/2008, o n.º 3 das suas conclusões diz o seguinte:
Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, n.º 1 do Código do Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial. [D.R. n.º 63, de 31 de Março de 2008]
Este acórdão não visa destruir o valor do registo como presunção “juris tantum”. Pelo contrário, atribui-lhe uma força acrescida, como garante da segurança jurídica. Como é sabido, os registos devem ser feitos com base em títulos válidos e eficazes para prova dos direitos dos registantes. A verificação desses pressupostos é uma componente do princípio da legalidade, expresso no artigo 68º do Código do Registo Predial. Isto determina que, por via de regra, a elisão da presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito só possa ser feita por quem, tendo legitimidade para o fazer, demonstra que o título que serviu de base ao respectivo registo enferma de algum vício, o que origina o seu cancelamento. Mas o registo consequente a uma justificação notarial em que se alega a usucapião (é esta a regra geral), sem que seja feita verdadeira prova dos fundamentos da mesma, não assenta num título válido e eficaz. Baseia-se num expediente que foi criado para obviar à falta de título.
Na acção de impugnação de justificação notarial invoca-se a falsidade das declarações prestadas na escritura. Não se pede a declaração de nulidade dum suposto título aquisitivo, porque a escritura não deixa de ser um documento autêntico (artigos 369º e seguintes do Código Civil). A simples invocação da falsidade das declarações determina que o documento seja logo ineficaz, a não ser que o justificante (o réu na acção) consiga provar os factos constitutivos do seu direito. Ou seja, o "sucedâneo" de título valerá até ao momento em que vier a ser impugnado, e mesmo depois se o réu conseguir provar o direito que invocou. Virá também a produzir o efeito de um título válido, se não existir impugnação. Nada mais do que isto se pode exigir.
Também no processo de justificação regulado pelo Código do Registo Predial, a decisão do conservador, favorável ao justificante (artigos 117º-H, n.º 4 e seguintes) pode, eventualmente, estar inquinada pela falsidade das suas declarações e das declarações das testemunhas. A decisão obtida só valerá nos termos atrás indicados para a justificação notarial. Assim, será eficaz, ainda que haja recurso, ou mesmo (passado o prazo para este), no caso de ter sido proposta uma acção declarativa para impugnar o registo de aquisição feito com base na decisão do conservador, quando o justificante conseguir provar em tribunal o direito que invocou. Produzirá também o efeito de título válido, se não existir impugnação.
Com efeito, no citado acórdão unificador de jurisprudência entendeu-se que, no caso de recurso ao tribunal, é ao justificante que compete o ónus da prova do seu direito, porque a respectiva inscrição de aquisição não beneficia da presunção “juris tantum” (artigo 7º do C.R.P.). Se tal prova não for realizada ou não for bastante, existe, a nosso ver, motivo para concluir que a inscrição é nula, ao abrigo da alínea b) do artigo 16º do C.R.P., que estabelece a nulidade dos registos feitos com base em títulos insuficientes para a prova do facto registado.
É importante assinalar que o proponente da justificação até pode não ser o titular do direito que se impugna, mas um mero credor interessado. Em nosso entender, se essas pessoas podem ter a qualidade de justificantes, também poderão vir a ser impugnantes, caso tenham interesse no cancelamento do registo feito com base na justificação. (cfr. artigo 92º, n.º2 do C. Notariado, 117º-A, n.º 2, e 117º-I, n.º 1 do C.R. Predial).
Como é óbvio, se um emigrante, em França, na Suíça, na Alemanha, ou noutro qualquer país, não tiver a sorte de ser informado, por um familiar ou amigo, da realização duma escritura de justificação que o prejudica, ou da ocorrência de um processo administrativo, instaurado no serviço de registo e tendente ao mesmo efeito, quando chega a Portugal vê-se na contingência de ter perdido o seu legítimo direito… E isto mesmo no caso de já existir um registo a seu favor ou a favor de um progenitor falecido. Todos sabemos quão falível é ainda o recurso às matrizes, sobretudo às não cadastrais, pelo que falha muitas vezes o pressuposto exigido para a admissibilidade da justificação (cfr. artigo117º-A, n.º 1 do C. R. Predial). Pode ter havido um “esperto saloio” que se aproveitou da sua ausência e da incerteza da sua morada, para obter, através dum expediente tortuoso, a inscrição no registo predial de um direito que não lhe pertence.
Porque se continua a permitir que vinguem, e proliferem, ervas daninhas no campo do registo predial, perturbando a sua fecundidade, compreende-se a “guerra” que tem sido declarada ao correcto conceito de “terceiro” para efeitos registrais. E o pior de tudo é que, relativamente ao assunto de que nos ocupamos, tolera-se que a falsidade ande de mãos dadas com uma ilusória aparência de simplificação, e sejam ambas classificadas com nota máxima. Vinte valores para quem mais facilmente consegue defender os seus próprios interesses, ludibriando outrem e enganando também os responsáveis por uma instituição cujo verdadeiro fim é garantir a segurança jurídica e onde a seriedade e o rigor deveriam constituir metas a atingir num futuro tão próximo quanto possível.
NOTAS:
[1] Em algumas partes deste trabalho foram transcritos, com pequenas alterações, alguns excertos de um outro texto, apresentado no XI Congresso Internacional de Direito Registral, realizado em Lisboa.
[2] É interessante o uso de um neologismo – transmitente- que nunca foi adoptado pelos dicionários da língua portuguesa. Nem sequer consta do Dicionário de Francisco Torrinha, publicado em 1937.
[3] Era o seguinte o teor do artigo 34º do Código de 1984, na sua primitiva redacção:
1. O registo definitivo de aquisição de direitos ou de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite ou onera.
2. No caso de existir sobre os bens registo de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido ou de mera posse, é necessária a intervenção do respectivo titular para poder ser lavrada nova inscrição definitiva, salvo se o facto for consequência de outro anteriormente inscrito.
Por sua vez, o artigo 35º estabelecia o seguinte:
- A inscrição prévia em nome do transmitente é dispensada para os registos de:
a) Negócios jurídicos de aquisição nos casos em que tenha havido justificação do direito;
b) Negócios jurídicos de aquisição titulados antes de 1 de Janeiro de 1984.
[4] Pelo Decreto-Lei n.º 60/90, o n.º 1 do artigo 34º passou a ter a seguinte redacção:
1- O registo definitivo de aquisição de direitos nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 9º ou de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite ou onera.
Por sua vez, o artigo 35º deixou de regular o regime das excepções ao registo prévio, passando a regular apenas os casos de dispensa de inscrição intermédia na cadeia dos actos, designada por “continuidade das inscrições” (outra face, digamos assim, do princípio do trato sucessivo).
[5] Novamente se fez uso do “neologismo”- transnmitente - não aceite pela Academia das Ciências, mas já integrado no léxico jurídico.
[6] O Código do Notariado, no seu artigo 54º, n.º 3, alínea b), admite a titulação dos actos com dispensa de inscrição prévia, não só nos casos de urgência devidamente comprovada, motivada por perigo de vida dos outorgantes, mas também por extravio ou inutilização do registo causados por incêndio, inundação ou outra calamidade como tal reconhecida por despacho do Ministro da Justiça.
[7] Artigo 20º do Decreto-Lei n.º 40603, de 18-5-1956:
[…]
Parágrafo 7º - o registo feito com base na justificação tem carácter provisório, convertendo-se em definitivo se não for legitimamente impugnado no prazo de um ano. Enquanto este registo subsistir como provisório serão igualmente provisórios os registos que se efectuarem sobre o mesmo prédio.
Parágrafo 8º- De todos os registos efectuados nos termos deste artigo será dado público conhecimento por meio de editais afixados nos lugares de estilo nas sedes das freguesias da localização dos prédios. Os interessados certos serão notificados pessoalmente por carta registada, com aviso de recepção.
Parágrafo 9º - A impugnação pode ser feita:
a) Pela apresentação de documento autêntico que ilida a presunção resultante do registo efectuado provisoriamente;
b) Pela apresentação a registo provisório, nos termos do artigo 201º do Código do Registo Predial, de certidão comprovativa de estar intentada acção para os efeitos do artigo 995º do Código Civil.
Parágrafo 10º- O registo impugnado nas condições previstas na alínea b) do parágrafo antecedente subsistirá como provisório até à decisão final da acção e será convertido em definitivo ou cancelado em face de certidão da respectiva sentença com trânsito em julgado.
Parágrafo 11º- Comete o crime previsto no parágrafo 5º do artigo 238º do Código Penal aquele que, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestar ou confirmar declarações falsas na justificação regulada neste artigo. Os justificantes serão sempre advertidos desta cominação.
[8] Do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 284/84 constava o seguinte:
O processo de justificação judicial tem permanecido fora do local próprio e não consta do Código de Processo Civil como um dos processos especiais nele previstos.
[…]
Além das pequenas alterações de que carecia, de acordo com os novos preceitos do registo predial, parece justificar-se a existência de um diploma autónomo, até oportuna inclusão no Código de Processo Civil.