A propósito do livro “1808”, de Laurentino Gomes
Acabei de ler o livro intitulado “1808” (6ª edição), do escritor brasileiro Laurentino Gomes. Sem embargo de, através do livro, se tomar conhecimento das enormes vantagens que o Brasil conseguiu com a instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro e, simultaneamente, dos prejuízos que Portugal sofreu (o que o autor não poderia ocultar, sob pena de falsificação da História), a verdade é que a sua prosa enferma de variadíssimos erros. Quanto a alguns deles, até um leigo nessa matéria como eu é capaz de detectá-los a uma primeira leitura. Quanto a outros, basta consultar alguns manuais de História.
Assim:
Na página 57, o autor diz que foi graças aos ingleses que D. João I conseguiu impor-se como rei da dinastia de Avis. De facto, ele casou-se com uma inglesa, D. Filipa de Lencastre, o que é absolutamente natural, dado o pacto de amizade que existia entre as duas nações – Portugal e Inglaterra - e o auxílio prestado pelo rei de Portugal ao duque de Lencastre. Mas não consta que fossem as tropas inglesas, aliás enviadas em número bastante restrito, que conseguiram rechaçar as espanholas, vencidas em Aljubarrota. Os historiadores falam no envio para Portugal de muito poucos archeiros, mercenários e cavaleiros, alguns dos quais terão estado em Aljubarrota.
O diferendo que se havia estabelecido entre a monarquia espanhola e a portuguesa, por causa do casamento da princesa Dona Beatriz, filha de D. Fernando e de Dona Leonor Teles, com o rei de Castela, o que, em princípio, lhe daria direito a reivindicar o trono de Portugal (Dona Beatriz era a herdeira do trono português, depois da morte de seu pai), terminou com os Tratados de 1411 e 1432. Mas o Tratado de 1411 não foi aquilo que o autor afirma, através das seguintes palavras: “D. João I, filho bastardo de Pedro I conseguiu […] arrancar de Espanha, em 1414, o reconhecimento da independência de Portugal”.
Portugal já era independente desde 1143, a partir da conferência de Zamora, muito embora não tenha sido formalmente atribuído, nessa altura, por Afonso VI, o título de rei a D. Afonso Henriques. Mas a independência foi formalmente reconhecida em 1165, por Fernando II, na conferência de Pontevedra. Portugal só a perdeu em 1580, tendo-a recuperado depois, em 1640. Os tratados em causa destinaram-se apenas a restabelecer a paz entre as duas nações.
O autor afirma que Portugal foi o último país a abolir a escravatura e a Inquisição. Ora, pelo contrário, Portugal foi o primeiro país que aboliu a escravatura, por determinação do Marquês de Pombal, relativamente aos índios, primeiro do Pará e do Maranhão (1755), e depois relativamente a todos os índios do Brasil em geral (1758).
A escravatura não foi abolida em relação aos negros, por motivos óbvios. As condições sócio-económicas não o aconselhavam. Sem embargo de ser lamentável a existência de tal instituição, vigente desde tempos imemoriais, certamente a mesma, no Brasil, terá sido considerada um “mal necessário”. Um país como Portugal, com escassez de gente para povoar e desbravar essa grande colónia, como poderia não temer continuar com o seu ímpeto vanguardista, que já tinha honrosos antecedentes? De resto, havia exemplos muito pouco dignificantes por parte de outros países, como a Inglaterra, que faziam a abolição no papel e depois eram desmascarados, por continuarem nos mares com os seus navios negreiros.
De facto, no Brasil a escravatura só foi totalmente abolida em 1888 pela princesa Isabel, bisneta de D. João VI, enquanto princesa regente, por ausência do pai, o imperador Pedro II. Mas o Brasil não constituía, como o autor sugere em várias passagens do livro, todo o “império colonial português”. Este era muito mais extenso.
Por sua vez, a Inquisição foi suprimida na Índia em 1812, e em Portugal, pelas Cortes Constituintes, em 5 de Abril de 1821. Mas, como diz Joel Serrão, no seu “Dicionário da História de Portugal”, a Reforma Pombalina já tinha equiparado o Santo Ofício a qualquer outro alto tribunal régio, tirara da sua alçada a censura literária e declarara, em 1775, abolida a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, todos considerados, daí para o futuro, com iguais possibilidades de acesso a honras. Por outro lado, segundo fontes da INTERNET, que, é certo, nem sempre são totalmente credíveis, em Espanha a Inquisição só foi abolida em 1834.
A imagem de D. João VI, apresentada no livro em causa, é fruto do aproveitamento de um “cliché”. Normalmente, este é adoptado para ridicularizar, não só a família real como o povo colonizador. Essa imagem, excluindo a parte que respeita à falta de atributos físicos agradáveis, o que pode ser comprovado através de retratos da época, é largamente contrariada em muitas partes do livro. É de crer que nessa altura não existissem grandes hábitos de limpeza por parte da família real e da comitiva que a acompanhou, mas no resto da Europa também se passava o mesmo. Há historiadores que contam que nas festas organizadas no Palácio de Versalhes os convidados faziam as suas necessidades nos seus belíssimos jardins… O facto de a corte portuguesa não se preocupar muito com a aparência poderia ser o resultado de se encontrar numa colónia que considerava subdesenvolvida, povoada sobretudo por índios e negros, o que gerava alguma perplexidade em face da constatação do luxo extravagante exibido nas festas promovidas pela Coroa.
Quanto à indecisão, cobardia e frouxidão do rei, acho que ele era, pelo contrário, o que nós apelidamos de “mula”, ou seja, fingido, totalmente diferente do que aparentava. O próprio autor, no livro, contraria a tese da indecisão e cobardia de D. João VI. A sua decisão em rumar para a Baía, a fim de pacificar essa região e conseguir um Brasil unido, sob a égide da Coroa (hoje já ninguém refuta a ideia de que o Brasil deve a D. João VI e aos seus conselheiros o facto de ter uma tão grande extensão territorial); as medidas de grande alcance político que logo tomou, nomeadamente a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional; a sua simpatia e humanidade, que o levaram a contrariar a aplicação de penas terríveis aos implicados em algumas faltas consideradas graves - tudo isso contraria essa tese. E o facto é que uma mentira muitas vezes contada acaba por virar verdade.
Mas o autor refere muitas outras atitudes que desmentem o mito do “fraco”, do “indeciso”, do “coitadinho”. Haja em vista o acordo (certamente remunerado) que ele realizou com o jornalista Hipólito José da Costa, director do Correio Braziliense, impresso em Londres, que só dizia barbaridades sobre os portugueses e depois passou a bajular a Corte!... Foi um acto de grande estratégia política.
Haja também em vista a decisão do rei em não aceitar abrigar-se na embarcação Hibernia, da esquadra inglesa, ao retirar-se para o Brasil. Recusou esse conforto por lhe parecer politicamente incorrecto. E suportou todo o sofrimento inerente a uma viagem nas piores condições, com uma dignidade que é digna de realce. Aliás, tal atitude foi extensiva a toda a família real e a muitos nobres que a acompanhavam.
Também contraria a tese da indecisão e cobardia o facto de, contra todos os conselhos, ter decidido regressar a Portugal em 1821, em vez de seu filho, D. Pedro, embora não ignorasse o clima hostil que existia na metrópole. Em vez de indecisão e cobardia por que não falar em paciência e resignação? Estas, são qualidades que se atribuem a D. João VI e constituem uma prova da boa educação que lhe tinha sido ministrada, apesar de não ter sido previsto que algum dia viesse a ocupar o trono.
Também há uma certa contradição ao ser apresentada a família real como inculta. O autor não conseguiu omitir o facto de a mesma ter grandes conhecimentos no campo da arte da Música. (Pudera! Toda a gente sabe que D. João VI era um melómano.) Mas procurou minimizar os seus conhecimentos em outros campos artísticos, o que está em flagrante contradição com o surto de grandes iniciativas nesses domínios, promovidas pelo rei, no Brasil. E como justificar o facto de um “inculto” como D. João VI se sentir ofendido por ter emprestado dois livros da Biblioteca Real a um embaixador inglês que não os devolveu? Até fez uma queixa formal ao governo inglês e encarregou o embaixador português em Londres de recuperar os livros (págs. 285 e 286).
A Biblioteca do Palácio da Ajuda era notável em quantidade e qualidade, e o autor diz que a mesma constituía uma extravagância, entre gente tão inculta. Mas quem é que escolhia os livros que constituíam o acervo dessa importante Biblioteca? Seria o clero regular? Este era bastante instruído, mas certamente exercia influência cultural entre as pessoas de classe mais elevada.
O rei era medroso. Não gostava de caranguejos e trovoadas… Era supersticioso? Quem poderá atirar a primeira pedra em matéria de superstições?... Quando se quer atingir alguém, tudo se aproveita, mas o mais grave é que, ainda hoje, no Brasil, estão em uso esses “clichés”, para tentar ridicularizar o povo colonizador. O rei e a rainha eram feios? Nos outros países, também houve gente feia dentro das famílias reais. E até picada das bexigas, como a rainha Isabel I de Inglaterra, segundo relatam algumas fontes. Por outro lado, também houve sempre gente bonita. A princesa Isabel, filha do nosso rei D Manuel I, que casou com o imperador Carlos V e foi mãe de Filipe II de Espanha (infelizmente, Filipe I de Portugal), era considerada a princesa mais bonita, além de ser a mais rica, da Europa.
Enfim, a páginas 145, o autor acaba por dizer que D. João VI “lograva realizar os seus intuitos pela força tremenda da apatia e do adiamento. Triunfava cansando os seus adversários”. Ora, isto seria o resultado de indecisão e cobardia, ou simplesmente uma manifestação de grande prudência e hábil estratégia política?...
Não é possível deixar de registar tantas incongruências. É certo que, com a família real, emigraram muitos nobres que eram verdadeiras sanguessugas, vivendo à custa do erário público. Mas também emigraram muito bons conselheiros do rei e gente com iniciativa, que, em poucos anos, mudou a face da colónia Brasil.
O autor diz que o Brasil podia viver sem Portugal, mas Portugal não podia viver sem o Brasil. Puro engano e pura ingratidão! O nosso povo não beneficiou com as riquezas do Brasil. Poderia citar alguns monumentos, onde foi aplicado o ouro e as madeiras exóticas brasileiras, e considerá-los como uma mais valia, mas esta só no futuro viria a ter alguma importância, e mesmo assim apenas no domínio cultural. Trabalhos dessa natureza, executados sob a égide dos portugueses, foram muito mais relevantes dentro da colónia do que na metrópole. Se alguém beneficiou com a exploração colonial, foi uma parte diminuta da sociedade portuguesa que se dedicava ao comércio, mas tudo se perdeu com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro. Pensemos em todos os bens que D. João VI e o seu séquito transferiram para a colónia. Pensemos no rombo que o comércio da metrópole sofreu, com a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, e depois com as Invasões Francesas.
Se a Corte tivesse permanecido em Portugal, os franceses teriam sido vencidos da mesma forma, e o povo português não teria passado pelos tormentos por que passou, e a espoliação dos seus bens não teria sido tão intensa. É esta a opinião de grande parte dos peritos nessa matéria. Somente o Brasil beneficiou com a instalação da Corte no Rio de Janeiro e, mesmo assim, continuam alguns historiadores brasileiros a tratar de forma preconceituosa a memória dos nossos reis comuns…Infelizmente, os historiadores portugueses mostram indiferença em relação a esses preconceitos, e, em alguns casos, até os sublinham, preferindo vencer pela risota que, quando podem, também aplicam reciprocamente… Mas os historiadores brasileiros preferem apoiar os seus trabalhos somente nas opiniões dos seus pares e em opiniões de estrangeiros, sobretudo ingleses e americanos, que, obviamente, não são totalmente imparciais, porque também querem levar água ao seu moinho… Quando muito, citam trabalhos de historiadores portugueses antigos, cujo material histórico não tinha o peso que tem aquele que hoje existe na obra dos mais recentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário