20/01/2009

Comentário sobre o livro "Música de Viagem"

COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO “MÚSICA DE VIAGEM"
De
Cristino Cortes



PREÂMBULO
A poesia metafórica costuma abrir alguns caminhos por onde o leitor pode deambular à procura do simbolismo da imagem, da frase, da palavra. É certo que nem sempre o resultado dessa deambulação é aquele que o próprio poeta espera, mas agrada -lhe que os caminhantes cheguem a díspares conclusões. Segundo afirmam os críticos, é essa a melhor prova do valor dos poemas. Porém, nem todos os “entendidos” atribuem à metáfora o peso que ela assumiu para as correntes literárias do século XX. É o caso do grande poeta Jorge Luís Borges, que deixou a sua opinião expressa em alguns textos, um deles escrito em Lisboa, em 1924, e intitulado "Examen de Metaforas", e outro em 1936, intitulado "La Metáfora", de que, segundo se diz, só se venderam 37 exemplares.
O falecido escritor e crítico literário, Joaquim Montezuma de Carvalho, resumindo o pensamento de Jorge Luís Borges, escreveu: “[…] está Jorge Luís Borges de passagem por Lisboa e alguma coisa importante lhe ocorre no fundo do espírito recapitular, tem de pensar o sentido da modernidade e medita sobre a função da metáfora (que desacredita e era ela o principal esteio dos vanguardistas, como o foi em Portugal dos modernistas…), concluindo pelo valor da poesia acima das metáforas, até delas prescindindo para maior mérito e pureza, à arte retirando quanto de espectáculo e exibicionismo detém. Borges, com esta declaração de Lisboa, de todo se afasta programaticamente da arte como eufemismo. O mundo é bem mais sério do que criar experimentalismos literários, no fundo quezílias entre ideólogos dos «ismos»! A essência da poesia não se refugia na metáfora.” [1]
Se a metáfora exprime uma analogia entre coisas ou realidades, estas têm de ser do nosso conhecimento e a comparação deve assumir alguma lógica. De outro modo, a linguagem torna-se confusa, inacessível, hermética. Ora, Cristino Cortes nunca abusa da metáfora. É esta uma característica da sua poesia, em que porém realiza, tanto quanto baste, uma escrita conotativa, essencial para que os poemas se situem dentro do género a que devem pertencer. Mas mesmo naqueles poemas em que minimamente se aproxima desses rasgos de metaforismo hermético cumpre-se a ideia de Borges. Por isso, a sua poesia nos toca a alma.
Comentar um livro de poesia lírica, como este de Cristino Cortes, intitulado “Música de Viagem”, é missão difícil, mas vou tentar exprimir uma opinião sobre alguns aspectos.


MÚSICA INTERIOR
Há uma música interior (que não deve ser confundida com musicalidade formal) que permanentemente arrebata Cristino Cortes e se irmana com a própria Poesia, não permitindo que ele ande sozinho, como tão bem exprime nos dois poemas intitulados “O Lugar da Solidão”. Essa música interior é-nos sugerida por palavras simples, como cordas de viola, piano, flauta, oboé, canto, orquestra, inseridas em versos que por vezes exprimem pensamentos profundos. É o caso da quadra seguinte que integra o soneto “Música Interior (1)”:
Uma coisa é certa, bem sei, e não sei se será
Boa ou má: só uma corda de cada vez toco.
Duro de ouvido a mais não me atrevo, logo
Na memória misturo os sons, até os que não há.
Sem discutir o grau de musicalidade da quadra, ao contrário de outras em que esta é perfeita, porém não era possível resumir em menos palavras o valor da concisão na escrita. Abaixo a prolixidade retórica duma poesia que nada tem para dizer e mascara essa vacuidade com complexas metáforas que fogem ao senso comum! Mas Cristino Cortes, humildemente, relaciona o seu procedimento com a dureza de ouvido…A modéstia e a abertura para opiniões e atitudes alheias são das suas maiores qualidades.
O canto poético só tem justificação se for escutado, e é esse o desejo máximo do cantor. Diz o poeta:
Justifica-se o canto se alguém o quiser ouvir.
A viola afino, depois será Deus a decidir.
Mas a Cristino Cortes qualquer canção faz feliz. É certo que canta melhor na Primavera, símbolo do renascimento interior, da alegria e da renovação:
E canto sem pretexto ou inspiração
Com a alegria do garoto que viu um ninho;
Fortuito e disponível como um bom vinho
De acordo agora a cabeça e o coração…
Com a sua imensa disponibilidade para apreender os dois mundos, o interior e o exterior, o Poeta admira o galo que o desperta e canta pela manhã fora, sem qualquer contenção:
Mas o bicho não quer saber, canta, e é esse espanto
Que me dá a surpresa, íntima e funda alegria
O próprio estímulo de quem trabalha ao desafio
e toda a hora é bem adequada a esse canto.

Bem faz pois o rebelde do galo do meu vizinho
Cantando se lhe apetece, nada a ninguém
Pedindo licença, fazendo vénia… Ele não tem
Relógio nem o precisa, é um rei em seu ninho.


O galo é símbolo de orgulho e coragem. Canta quando lhe apetece e como lhe apetece, desafiando o poeta a fazer o mesmo, com a liberdade inerente à sua condição de amante e difusor do belo. Pois
Para que servirá a Poesia, se não para a todos
Fazer melhores, dar uma diferente e real paz;
Não será o belo o caminho do bem, onde vás
Se altera mundo, persistência e bons modos?!
A leitura destes versos faz-nos repensar o conceito de “arte pela arte”. Não deverá ter a escrita uma função pedagógica, não deverá ajudar a atingir o bem, o absoluto, a redenção? Não se trata de regressar a um neo-realismo, cujo principal objectivo é a denúncia das injustiças sociais, mas sim de, pela transmissão e difusão da arte poética, tocar o coração das pessoas e encaminhá-las para a procura de algo espiritual, de valores que são expressão do absoluto.



ARTE POÉTICA
Cristino Cortes dedicou dez sonetos modernos, libertos de algumas das peias das regras clássicas, a tecer congeminações sobre a Arte Poética. O título dessa série de sonetos é precisamente “Para Uma Arte Poética, Aproximações”. A mesma começa assim:
Ando à procura, oh meus amigos. Ando à procura
E isso não quer dizer que algo tenha perdido;
Direi mais como predisposição, sexto sentido
Em tudo vendo a luz, até na noite mais escura.
[…]
É uma atitude, mais persistência que mania.
Oxalá de tanto a procurar não fuja a poesia!

E mais adiante, noutro soneto:
Em todo o sítio a encontro, nas viagens que abraço
Ou imagino, também entre as pregas da rotina
Deste fluir diário, qual face de vulgar esquina…
Com ela vivo, e decerto que bem pouco faço!
[…]
Ando com ela, sou-lhe fiel, e não saberia
Fugir-lhe ou deixá-la, mistério, aragem esguia.
Na verdade, Cristino Cortes vislumbra poesia em tudo: nas coisas e nos lugares que encontra nas suas viagens, na rotina do dia a dia, nos hábitos inerentes às estações do ano e ao período de férias, nos recantos da sua cidade – Lisboa - , que lhe tem inspirado muitos belos poemas, etc., etc., etc. Até as idas à tipografia, situada na Graça, duas ou três vezes por semana, lhe permitiu construir uma “geografia sentimental dos sítios”. Mas a síntese dos encantos da sua cidade exigiu que a observasse do alto do Cristo-Rei, num dia limpo, relanceando os olhos pela paisagem, de ocidente para oriente…E lá estava tudo: o Castelo, S. Vicente, Santa Engrácia, tudo o que havia desaparecido numa primeira observação, feita em dia anterior, toldada pela inclemência do vento, do frio, da chuva…Haverá maior prova de amor à sua cidade? A repetição do gesto é, em si mesma, uma atitude poética. A poesia convive com este poeta que manda no calendário, que tem um calendário privativo, que recusa regras e convenções estabelecidas e exprime essa recusa duma forma simples:
Nesta pessoalização de regras e convenções
Vejo vantagens, adequação, mútua simpatia;
Prefiro o sim de cada um à regra da maioria
Dane-se o mundo, conveniências e mais razões!
[…]
Adequado o relógio a agenda e o calendário
Posso ir dormir, ou passear, como mais me convier;
Se perguntarem por mim já saí, quando vier
Logo se verá, o que for soará, fujo de tal fadário.


SENSO DE HUMOR
Não é possível comentar a poesia de Cristino Cortes sem acentuar o senso de humor que caracteriza muitos dos seus poemas e denuncia um optimismo (inato ou adquirido) e uma certa alegria de viver, que não exclui alguma contenção de gestos e palavras, o que nem sempre ao poeta se afigura como benéfica para o seu equilíbrio…
No poema “O Pecado da Omissão” (1), ele diz:
E então penso que talvez à noite ainda possa curar
O infeliz lapso da palavra que não disse e cuja falta
Visivelmente me turva o equilíbrio do dia, assalta
O tranquilo sonhar e fazer coisas, viver e respirar…
Já no poema “Boa Vida” ele exclama:
Não se pode dizer, na verdade, que a vida e o que ela encerra
Me ande a correr lá muito mal… Neste primeiro dia de férias
Penso no cão promovido à categoria de luxo, pilhéria
Já transmitida ao meu filho que hoje vem da Inglaterra.

E eu próprio, aliás, em tempos promovido a sábio engenheiro,
Fui agora alçado a escultor […]

[…] Engenheiro e arquitecto é sem dúvida melhor que o licenciado
A granel que por aqui abunda, qualidade rara e primeira
De escultor é que não vejo a origem a forma e o proveito.
A não ser…são as palavras pedras, e o lápis a vertical do leito.

As palavras de Cristino Cortes nunca são pedras susceptíveis de agredir. Até porque, nos seus textos de aproximação à arte poética ele esclarece:
Procuro não tanto as palavras mas composição
Entre elas possível, nessa raiz da harmonia;
[…]
E só depois sei ter o poema motivo e um tema
O continente envolve o conteúdo; o resultado
É sempre provisório, o instante é sempre adiado
Mas prossigo, jamais desisto e não tenho pena.
Para um verdadeiro poeta o resultado é sempre provisório, mas isso é mais uma razão para prosseguir. É ele próprio que o sugere em outro poema da série “Para Uma Arte Poética, Aproximações”:
Tal como na lavoura aos bons anos e colheitas
Sucedem-se outros, menos férteis ou ricos, maus mesmo.
[…]
Mas não é um tempo perdido, nos campos não é
Inútil chuva e vento […]
São muitos os poemas do livro “Música de Viagem” que espelham o senso de humor de alguém que vê o mundo com olhos marotos e um sorriso nos lábios. “Um Cinto da Cor de Pele”, “Episódio de Verão”, “Poema ao Natural”,”Poema Sobre a Pevide e a Laura”, e outros, são poemas em que se revela o lado humorístico deste poeta, para quem a beleza feminina é sempre motivo de inspiração, ainda que o artifício possa suscitar-lhe alguma crítica compreensiva e tolerante. Os poemas “Os Cabelos de Inês”, Aparição” e outros já referidos, dão-nos a conhecer uma sensualidade que reforça e adoça, ao mesmo tempo, o pendor humanístico duma poesia que estabelece laços entre o carnal e o espiritual, entre o corpo e a alma, entre o universo e a divindade.










[1] Cfr. Neves (Francisco Correia), in “O Plural no Singular” (Separata de “A Comarca de Arganil”, págs. 25 e segs., apud “Do Tempo e dos Homens”- edição do Instituto Piaget - compilação de textos de J. Montezuma de Carvalho, por José Fernando Tavares)

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