15/06/2009

ERA UMA DOR DE ALMA





Era uma dor de alma. Aquela que me fascinava pela sensatez com que aconselhava os amigos, sempre que as dúvidas os assaltavam, nos momentos de tomarem decisões importantes, não conseguia agora construir uma frase coerente. Quando tocava o telefone, ela pegava no auscultador e dizia: “Sim!” Depois, ao ouvir o meu nome, que ao contrário de antigamente eu tinha de pronunciar, proferia sempre a mesma frase clássica, gravada no seu cérebro amarrado pelas rédeas do preconceito social: “Estás boa?” De aí em diante, a conversa era de surdos… A qualquer pergunta, ora respondia de forma evasiva, ora se perdia em considerações que nada tinham a ver com o assunto. Às vezes constituíam mero desabafo que eu tinha de decifrar. Discurso desconexo, com frases em que, aqui e ali, tinham penetrado vocábulos que não faziam sentido, exigia muita atenção, muita intuição e algum saber sobre áreas surrealistas da linguagem… As suas palavras poderiam ser transformadas em estranhos poemas em prosa, onde a metáfora predominava e a lógica era difícil de descobrir.
Os telefonemas começaram a rarear. As visitas também. Não conseguindo perceber-lhe o discurso, também não era capaz de decifrar o seu olhar. Parecia-me demonstrar orgulhoso escárnio. Parecia-me que troçava do meu semblante de comiseração…Mas outras vezes seus olhos ressumavam amargura e desespero. Eu falava com os meus botões: “Estás cheia de raiva, por não conseguires comunicar comigo!” Mas não tinha coragem para lhe pedir que transmitisse por escrito o seu pensamento, porque poderia ter perdido a memória de muitas palavras.
Um belo dia, foi um rapaz novo que me atendeu o telefone: ” A minha avó já não mora aqui. Foi internada num lar.” Procurei saber onde se situava. Fui esclarecida.
O Lar era um edifício bem conservado. Havia à sua volta um bonito jardim com algumas árvores cheias de flores, que perfumavam o ambiente. Estava-se na Primavera. Havia mesas espalhadas por vários sítios. Viam-se alguns idosos com bom aspecto, conversando de forma animada. A primeira impressão que recolhi foi positiva. Lancei a vista em redor, mas não vi a minha amiga. Informaram-me de que se encontrava recolhida no quarto. Este ficava no primeiro andar e tinha o número vinte e dois.
Entrei no edifício. Logo no átrio, na zona de recepção, senti ter penetrado num mundo estranho. Cadeiras de rodas deslizavam por invisíveis calhas, fazendo circuitos fechados entre a porta da sala de estar e a da “sala de refeições”. Velhinhos e velhinhas, de rosto engelhado e cianosado, de olhar distante, onde não se vislumbrava qualquer emoção, a não ser o medo ou o conformismo, eram conduzidos por auxiliares que momentaneamente retiravam a sua máscara bondosa, para aliviar o rosto traumatizado por esse enfeite imposto para impressionar os observadores.
Por curiosidade, fui até à sala de estar. O panorama humano era ali um pouco diferente. Um televisor a um canto acolhia os olhares atentos de algumas pessoas. Internados e familiares visitantes partilhavam momentos de saudável recreio. Dei a volta e espreitei para dentro da “sala de refeições”. Ninguém me impediu de deambular à vontade pelas instalações, consideradas de luxo. Mas eu não fixei a cor das paredes, não reparei nos quadros, não contemplei o meu rosto reflectido nos espelhos ou (quem sabe?) no parquet luminoso… Nem sequer me apaziguou os nervos o verde das folhas das begónias e pequenas palmeiras que só mais tarde vi que ornamentavam a sala. Só observei a parte mais impressionante da paisagem humana: alguns cadáveres ambulantes sentados à mesa, com a chávena e o prato de sobremesa na frente (estava-se na hora do lanche). Alguns nem conseguiam cortar o pão e levá-lo à boca. Eram auxiliados nessa tarefa por empregadas que simulavam algum bom humor. Algumas até faziam festas nos rostos dos pacientes, para chamarem a atenção da visita que eu era. Ouviu-se um gemido, um grito, uma tentativa de rebelião…Pensei: “ No meio destes pacientes resignados, domados, sedados, ainda há alguns revoltosos… Pobrezitos, mal sabem o que os espera! Uma injecção dum sedativo qualquer vai logo metê-los na ordem!” Senti também uma absurda vontade de gritar, esbracejar, partir tudo à minha volta. Decisivamente, aquele ambiente punha-me louca. Mas tinha que me conter. Precisava de levar a cruz ao calvário. Ainda não tinha visitado a minha amiga.
Mal entrei no quarto-sala, pseudo-suite de luxo, com um televisor, uma aparelhagem e várias fotografias de familiares, veio-me ao nariz um cheiro acre que não foi difícil de identificar. A pobrezinha estava estendida na cama, coberta com uma colcha branca, amarelecida pelas lavagens. Beijei-a na testa. Reconheceu-me logo. Sou leiga em medicina, mas a doença neurológica que a afectava (a enfermeira afirmava que não era Alzheimer…) não lhe tinha destruído totalmente a memória. Nunca me pareceu que não compreendesse as minhas frases. Quando lhe falei da minha família e lhe contei algumas cenas divertidas, o olhar iluminou-se-lhe, como era costume acontecer nos seus belos tempos. Mas, entretanto, o seu rosto agitou-se em espasmos, seu olhar fixou-se em mim, aterrorizado, estendeu-me as mãos para se levantar, abriu as pernas sob a colcha. Pensei que a ocorrência de alguma necessidade fisiológica a punha assim inquieta. Procurei acalmá-la, dizendo que ia chamar a acompanhante. Anuiu com a cabeça.
Fui, mas voltei sozinha. Entretanto, o cheiro acre que empestava o quarto intensificou-se. Percebi que a enfermeira, ou auxiliar, ou fosse quem fosse que a acompanhava, já não chegaria a tempo. Quando por fim a mesma apareceu contei-lhe o sucedido, e ela respondeu-me nas calmas: “Não se preocupe tanto! Ora, ora, então ainda não sabia que a sua amiga está incontinente!?...” Depois, com uma ponta de enfado na voz, indagou: “Então, meu amor, quer sentar-se no seu sofá?...” A doente disse que sim com a cabeça.
A paciente foi erguida no estado em que se encontrava, empapada em líquido (ela, que era tão asseada e primorosa no seu arranjo pessoal!...), e aconchegada no amplo sofá, em frente do televisor que estava a transmitir uma telenovela brasileira…Só para gozo da acompanhante, pensei eu, que entretanto se tinha ausentado, quando lhe anunciaram a minha visita.
Tentei reatar a conversa com esta mulher desgraçada, farrapo humano pouco a pouco desfeito pela falta de afecto (real ou imaginário, segundo o conhecimento que eu tinha do seu passado) e pela húmida solidão dum quarto de luxo, num lar de cinco estrelas, mas não fui capaz. No olhar que ela me deitou havia um misto de desesperança e desprezo. Na realidade, já nem esperava de mim uma piedosa mentira, a promessa de a libertar daquele inferno. Só a morte seria capaz de lhe dulcificar a existência. Dulcificar?... Ou extinguir?... Terrível dilema que não sei resolver.

1 comentário:

Anónimo disse...

Exmªa SrªDrª,
querida amiga,
sabendo-se que sou uma grande admiradora sua ,não quero deixar de registar, aqui,no seu Blog ,a alegria e emoção que sinto ao ler os seus trabalhos.Considero que grande é o previlégio de conhecê-la,assim como à sua obra.

Paula Frade