A MIGUEL TORGA
Tu foste esculpido em rocha e nem os ventos uivantes
te lograram afectar no aprumo do teu ser.
Nunca a lama se colou em ti.
Tu foste sempre lavado pela chuva benfazeja
que fecundava tua alma, tal como fecundava os montes
onde crescem as robustas torgas.
Tu foste esculpido em rocha mas ficaram gravadas no teu
ser,
ao longo duma vida, as linhas da paixão
por teu país de marinheiros, oriundos da Ponta de Sagres.
Tu foste esculpido em rocha mas ficaram gravados no teu
ser
as rugas do sofrimento e o ricto do desprezo
por alguma podridão dos homens.
No entanto, tuas obras completas são desenhos magistrais
do amor
que dedicaste a toda a humanidade, sem excluir aqueles
em cujas veias corre o sangue do teu sangue.
Teu ser feito de pedra viveu apesar disso
impregnado do fluxo que emanava da fonte da incerteza
sobre Quem engendrou o Universo, belo,
mas onde se cometem actos desumanos.
Rocha dura, torga robusta,
continuarás plantado sobre o monte onde nasceste,
e os séculos passarão por ti sem nunca se alterar
o aprumo do teu ser e a beleza dos traços
com que foste moldando essa tua própria estátua.
A FERNANDO PESSOA
O Poeta é livre e não suporta o freio,
é um cavalo alado que percorre
as montanhas e os vales,
e às vezes, misterioso, se dissolve
na linha do horizonte.
Ninguém pense aprisionar a Poesia,
desenhar a carvão em alva folha
sua grácil figura por outrem inventada...
o Poeta é livre, é um cavalo alado
que não respeita as praias,
os limites da Terra
onde cavalga em segurança.
Ele sobrevoa facilmente as águas
e penetra nas grutas onde habitam
as aves guardiães do "mar salgado",
cujo sal são as lágrimas dum povo
que em lugar de o temer sempre o venceu.
A TEIXEIRA DE PASCOAES
Numa doce paisagem outonal,
pairando numa mancha de brancura,
lá onde morre essa espiral de sombra,
ó nebulosa e mítica presença
de humanos traços e um perfil real,
tu viverás, Poeta, eternamente.
Nunca secou essa invulgar semente
que deixaste cair de grande altura,
pairando numa mancha de brancura,
numa doce paisagem outonal...
Ó nebulosa e mítica presença,
faz germinar essa invulgar semente
que deixaste cair de grande altura,
dessa tua montanha sacrossanta,
teu Marão luxurioso sem luxúria,
teu centro de relâmpagos em fúria,
lá onde morre essa espiral de sombra
e faleces de amor, sendo imortal...
Há-de crescer, pujante, a tua planta,
numa doce paisagem outonal...
A CESÁRIO VERDE
Cesário, com a tua honrosa lavra
cumpriste cabalmente o teu dever.
Resumiste abundante o teu saber,
de forma simples, numa bela quadra:
Contudo, nós não temos na fazenda,
nem uma planta só de mero ornato!
Cada pé mostra-se útil, é sensato,
por mais finos aromas que rescenda!
Em pouco definiste o teu labor,
Cesário doce e ao mesmo tempo forte,
pintaste a nossa vida, a nossa morte,
a rotina diária e o amor,
a azáfama daqueles que mourejam
na cidade e no campo o dia inteiro:
de cócoras, em linha, os calceteiros,
campónios sobre os prados que vicejam.
Tu viste traços que nos lembram gente,
na natureza (oh fértil poesia!):
uma cabeça numa melancia,
rude melão a sugerir um ventre.
Cesário, tu amaste a humanidade,
não semeaste a poesia num jardim
de plantas rotuladas em latim,
nem buscaste o aplauso dos confrades.
Nes mundo onde os fortes ou velhacos
serão apenas os sobreviventes;
e há pessoas sinceras e clementes,
e troncos grossos com seus ramos fracos
que nos fazem descrer da Providência,
nunca sentiste o teu amor canhestro,
nem perturbaste o teu fogoso estro,
inventando aneurismas em latência...
Adoraste as mulher´s entre dois sóis,
ladys loiras ou ruivas irlandesas,
tão pálidas, tão frágeis, indefesas,
ou audazes pastoras, rural boys.
Não as largavas ao desdém da sorte,
quando bizarras, gélidas, estranhas.
Construíste-as elásticas, com manhas,
mesmo espectros angélicos da Morte.
Amaste com amor feito ternura
vendedoras de gigas rebentadas,
esquálidas, magritas, enfezadas,
sem amigos, carinhos ou quentura.
Cesário, o que mais te repugnava:
adular literatos sem moral!...
O sentimento dum ocidental
essa máfia sinistra desprezava.
Mas vindouros imunes a tal ronha
valorizaram teus sublimes versos,
honestos, sem propósitos perversos
que algumas faces cobrem de vergonha.
De vergonha e de lágrimas tardias,
por epopeias mortas pelo tédio,
inéditos queimados sem remédio,
teu coração banhado em raivas frias.
(As palavras destacadas no texto pertencem a Cesário Verde)
(O poema A MIGUEL TORGA foi publicado no suplemento "Das Artes,
Das Letras, do jornal "O Primeiro de Janeiro". Os restantes poemas per-
tencem ao livro ESCUTA O CORAÇÃO DO MUNDO)
Sem comentários:
Enviar um comentário