25/04/2009

Versos Olímpicos, de José Ricardo Nunes

VERSOS OLÍMPICOS
de
José Ricardo Nunes




Confessamos a nossa surpresa. Quando recebemos um convite para assistimos à apresentação do livro “Versos Olímpicos”, de José Ricardo Nunes, nunca imaginámos o que teria dado origem a esse título. Não parecia sugerir uma relação com jogos olímpicos, mas sim uma incursão pelos domínios da Grécia antiga. Como é sabido, os poetas têm particular afeição pela mitologia clássica. Conforta-nos o facto de haver alguém que se atreveu a comentar este livro na Internet, revelando a mesma ignorância. Mas que ninguém se iluda. O que José Ricardo Nunes realizou foi um périplo poético, metaforizando-o com recurso às diversas modalidades dos jogos que dão corpo às Olimpíadas.
O Autor é um dos poetas que integram a geração da Novíssima Poesia portuguesa. Ele próprio se inclui, embora muito à justa, nessa geração, visto ter nascido em 1964, e o grupo de poetas que dão vida ou seguimento ao cânone então instituído são nascidos entre 1965 e 1975. Isto segundo os cálculos de José Ricardo Nunes.
Não queremos entrar em considerações quanto ao estilo de tal corrente literária, que não conhecemos suficientemente. Entendemos, porém, que este livro de José Ricardo Nunes, eivado de subjectividade, não é muito fácil de analisar. O resultado pode ser falível, à luz do critério do autor, que não à luz do pensamento e da sensibilidade individual do intérprete, totalmente livre para retirar da leitura aquilo que mais o impressionou, sobretudo se estiver de harmonia com a sua própria experiência de vida. Não é trabalho de somenos comentar a poesia de José Ricardo Nunes, não tanto pelo seu hermetismo (nesse aspecto, este livro é bem mais fácil do que os anteriores), mas porque não pode ser desligada das influências, que ele próprio aponta, de poetas que admira ou de quem bebeu o próprio “sangue poético”, numa vampírica incisão cirúrgica em seus escritos ou poemas mais emblemáticos.
No entanto, na nossa óptica, alguns dos poemas do livro são mesmo reveladores da posição do autor perante a vida e o destino do ser humano. Por isso, apesar de todas as objecções que é costume fazer a este tipo de comentário, aventuramo-nos a uma análise pontual do seu conteúdo
É o próprio José Ricardo Nunes quem afirma que os poemas do livro Versos Olímpicos se tornam mais compreensíveis à luz do “testemunho” de que fala Jorge de Sena no prefácio do seu livro Poesia I, publicado em 1961.[1] O testemunho, para Jorge de Sena, consiste na observação do mundo de forma humilde e expectante, mas vigilante, discreta, “dando de nós mais que nós mesmos” […] “ ‘O testemunho’ é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos.”
O poema Testemunho (p. 22) constitui uma referência ao “testemunho” de que fala Jorge de Sena, poeta agora fechado em livro, no desamor do esquecimento, mas bem recordado por uma elite consciente e bem preparada, de que José Ricardo Nunes é um ilustre exemplo.
Como acima referimos, muito embora José Ricardo Nunes possa ter uma visão diferente do conteúdo apreensível dos seus versos, os seus poemas sugeriram-nos os seguintes comentários:
O Poeta confessa não acreditar em Deus, mas não fugirão as suas palavras ao senso comum? Não revelarão apenas o seu agnosticismo, dificuldade em aceitar explicações para o mistério da criação? Não será a sua noção de Deus apenas diferente, não será essa força anímica que leva a percorrer pistas com entusiasmo e aplaudir aqueles que as percorrem? Não estará Deus dentro de cada um de nós?... Assim:

[…] Se Deus estivesse no topo / duma estratificada pirâmide burocrática / e não fosse o transcendente este vazio / de alguém que olha para alguém / até ao infinito. Mas é e não é. / Falo por mim – não acredito em Deus // Deus vê com os atletas / e corre por dentro dos espectadores. (Espectadores e Atletas – p. 10).

No poema Salto à Vara (p. 6), o poeta afirma avançar pela pista em direcção ao que foge de si e é outra coisa muito para além do que possa ser imaginado. E sabe que um colchão o espera. Mas aonde?... Tratar-se-á apenas duma bela referência ao conceito abstracto da esperança, a um mistério irrevelável, ou apenas à busca incessante daquilo que supera o Poeta, no seu acto de criação?
Entre sonho e realidade existe um abismo. Há múltiplos obstáculos a impedirem a concretização dum ideal. Por motivos alheios à sua vontade, o Poeta pode seguir um caminho diferente daquele que desejaria. O caminho percorrido por mão do destino há-de determinar os versos e a vida de quem os escreve. Cavaleiro e montada poderão ser concordantes. Mas, diz J.R.N.: “às vezes é o cavalo que me fere / com as esporas e me lança / a galope para fora do hipódromo, / como se entre a vontade e o destino / não houvesse flagrantes dissonâncias.” (Concurso de Obstáculos - p. 16).
O Poeta experimenta todos os jogos e “relegado de vez para o desporto”, afirma: passo agora vazio de mão em mão / pelas pistas dos estádios.” (O Testemunho). Quando o combate é violento, procura na multidão alguém que o proteja de si próprio, mas o Poeta é um solitário, um idealista que nunca se conforma e desabafa:

[…] Mas da teoria à prática vai distância / enorme. O dinheiro e a imagem / fazem o homem destes tempos mercantis / mesmo quando, tão do lado de cá /finge olhar do outro lado. […] (Florete - p. 14)).

O justo prémio da vitória é ser atirado à água (K8 Com Timoneiro – p. 21). José Ricardo Nunes identifica a água com a página do poema, ou seja, a escrita. Mas aí as braçadas são difíceis. Em 100 Metros Mariposa (p. 26) o Poeta diz o seguinte:

[…] Braçadas difíceis, confesso: / a imagem dissolve-se / e depois é só água / e na água não posso escrever.

A água é símbolo de purificação, a água purifica todas as imperfeições, mas a água simboliza também a energia do inconsciente.
Diz ainda o Poeta:

[…] Ninguém sabe o que se passa dentro / de água, como simulo / aí reter-me, tocar no fundo, permanecer / no fundo o máximo de tempo possível. (Trampolim de 20 Metros – p. 25).

Ao subir à superfície para receber aplausos e ouvir elogios, fica sempre de pé atrás [“atrás duma cortina”]. Confessa alguma timidez, medo de se expor ou falta de confiança nos seres humanos desprovidos de mérito ou capacidade de compreensão, que se juntam em “rebanho”, para aplaudir ou vaiar inadvertidamente?... É o que nos sugere o mencionado poema O Testemunho, em que o Poeta desabafa mais uma vez: “os aplausos e os gritos da turba descontrolada / sobrepõem-se às palavras que faziam corpo / comigo na solidão dos caminhos. As coisas / já não exigem as suas palavras.”
O poema Espírito Olímpico (p. 15) é um bom exemplo do que de início dissemos acerca desta poeta.”Vampiro”, no bom sentido, do sangue poético de grandes poetas portugueses que conhece profundamente, José Ricardo Nunes, neste caso, faz uma aproximação entre o seu Espírito Olímpico e o paradigmático poema de Mário Cesariny de Vasconcelos, denominado You Are Welcome To Elsinore. Diz Cesariny:

Entre nós e as palavras há metal fundente / entre nós e as palavras há hélices que andam // e podem dar-nos morte violar-nos tirar / do mais fundo de nós o mais útil segredo / entre nós e as palavras há perfis ardentes / espaços cheios de gente de costas / altas flores venenosas portas por abrir / e escadas e ponteiros e crianças sentadas / à espera do seu tempo e do seu precipício.[…]

Por sua vez, diz José Ricardo Nunes:

Há palavras que nunca servem / e palavras que se adaptam ao que pretendemos. / Talvez haja alguma apropriada para morrer. // O poeta deve procurar a palavra certa? / Deixemo-nos de conversas. /Temos à disposição palavras limpas / e palavras com restos de terra e sujidade. / Qualquer palavra se pode confundir com outra. / Já não é possível confiar em palavras. […]

Não é possível conseguir uma prova mais evidente da recusa da poesia que não se debruce sobre o essencial, sobre as vivências do ser humano, sobre a revelação do próprio poeta. Mas, como muito bem observou José Ricardo Nunes, em mensagem que nos foi dirigida, a propósito do nosso comentário ao seu livro Versos Olímpicos, agora reescrito, a poesia, que bem precisava de dispensar a retórica, porém não existe sem ela. É difícil conciliar o inconciliável.


[1] Livraria Morais Editora, Lisboa, p. 11.

2 comentários:

Anónimo disse...

Visitei o seu blog.
De entre os géneros literários, a poesia ocupa um lugar especial nas minhas leituras.
Gostei imenso dos seus poemas, felicito-a!
MM

Margarida Araújo disse...

Olá
Para dizer que gosto muito do José há muito tempo. Conheço desde pequeno.
Continuamos a ter autores bons nas Caldas e a Isabel é naturalmente um deles.
Um beijo virtual, mas amigo.